Antonio Martins

China: A Quarta Geração e seu desafio
(Porto Alegre 2003)

O que farão os novos dirigentes chineses diante das pretensões imperiais de Washington e das tensões internas provocadas pela desigualdade?

Os nove dirigentes são cultos, brilhantes e relativamente jovens. Liderados por Hu Jintao e apresentados em 16 de novembro, ao final do 16º Congresso do Partido Comunista Chinês, ocuparão a Comissão Permanente do Politburo -- núcleo central do poder, na nação mais populosa da Terra[1]. Sua escolha representa uma transição ousada, rara na tradição dos PCs. Dos antigos dirigentes máximos, apenas um (o próprio Hu, novo secretário-geral) permaneceu. Deixaram seus postos, além disso, todos os generais com mais de 70 anos (nove dos onze integrantes da Comissão Militar Permanente). O processo estendeu-se ao interior do próprio Comitê Central, o círculo mais amplo de comando do partido e do país: em mais da metade das 356 cadeiras, houve substituição.

A ousadia reflete a confiança extraordinária que parece dominar os governantes chineses, após duas décadas de introdução gradativa de mecanismos de mercado na economia. Em contraste com o crescimento medíocre e os riscos de depressão que marcam EUA, Europa ou Japão, a China registra, há mais de dez anos, taxas de crescimento em torno de 10% ao ano. Se calculado segundo o critério de preços correntes, seu PIB já é o segundo do planeta. O número de usuários de telefones celulares já é o maior do mundo; o de habitantes com acesso à Internet é o segundo; e o de acadêmicos com grau de PhD deve superar o dos EUA, no ano 2010. No discurso que pronunciou, ao abrir o 16º Congresso, o antigo secretário-geral, Jiang Zemin, expressou otimismo assombroso em relação à atual ordem internacional. “O desenvolvimento da tendência de multipolarização mundial e de globalização econômica trouxe oportunidades e condições favoráveis à paz e ao desenvolvimento. (...) O mundo está avançando para as metas de luz e progresso”, disse ele.

Conhecidos na China como a “Quarta Geração[2]”, os novos dirigentes do PC são produto de um projeto estratégico que vislumbra a oportunidade de transformar o país na maior potência econômica do mundo, mas rejeita confrontos com o capitalismo. Este plano, contudo, está ameaçado pelo papel imperial que os EUA agora procuram exercer, e pelas contradições internas provocadas por crescentes desigualdades. As tensões já começaram a aparecer, tanto nas análises de estudiosos sobre a China quanto em alguns discursos oficiais.

Mercado, disciplina e meritocracia

O ambiente partidário que permitiu o ascenso dos novos dirigentes está descrito em Disidai (A Quarta Geração), um livro cuja publicação é sinal das mudanças por que passa a vida política chinesa. Disidai saiu em chinês há alguns meses. É assinado por Zong Hairen, assumidamente um pseudônimo. O autor já havia lançado outras obras, colabora com um jornal econômico em Hong Kong e pertence ao Partido Comunista. Afirma que teve acesso aos arquivos secretos da Secretaria de Organização do partido, onde são cuidadosamente arroladas informações sobre os candidatos a postos de direção. Com base neles, antecipou com notável precisão os nomes dos eleitos para a Comissão Permanente do Politburo e traçou seu perfil detalhado.

Zong demonstra que a renovação do PC, concluída agora, está intimamente associada às reformas econômicas adotadas a partir de 1984, sob liderança de Deng Xiaping – e aprofundadas em 1992, no rescaldo da repressão à revolta de Praça Tien Amen. A China estava disposta a construir uma “economia de mercado sob condições de socialismo” – algo que Jiang Zemin qualificou agora, em seu discurso, como “façanha sem paralelo, contribuição histórica dos comunistas chineses ao avanço do marxismo”. Nas décadas seguintes, 75% da produção de riquezas seriam transferidos para o setor privado, embora o Estado mantenha enorme capacidade de direção econômica. Para comandar este processo, era preciso deixar para trás o período das grandes disputas ideológicas, que em períodos anteriores haviam resultado em intensa mobilização social, mas eram incapazes de dinamizar a produção.

A nova geração de dirigentes, sustentava Deng, devia ser leal e conhecer em profundidade a máquina do partido, mas ao mesmo reunir as características dos grandes executivos: pragmatismo, competência, especialização. Dispostos a consolidar esta concepção meritocrática, os líderes comunistas da época chegaram a desencadear uma espécie de head-hunting. Localizaram em todo o país e promoveram jovens dirigentes que haviam demonstrado brilhantismo e fidelidade. O processo avançou mesmo quando implicava em preterir membros conhecidos da velha guarda.

Executivo genial, político sem teste

Com 59 anos, Hu Jintao é o exemplo clássico. No início dos anos 80, era um jovem integrante da Comissão de Construção, na obscura e árida província de Gansu, no noroeste do país. Sua inteligência e eficácia foram notadas pelo secretário provincial do partido, que o guindou ao posto de subchefe da comissão, atropelando diversos postulantes. De lá, Hu passou à Liga da Juventude Comunista, em Pequim, onde permaneceu pouco tempo. Aceitou as designações para secretário-geral do partido em duas das províncias mais pobres – Guizhou e Tibete. Nesta última, decretou lei marcial, em março de 89, para enfrentar uma onda de protestos. Ao fazê-lo, abriu um precedente na história da República Popular da China e antecipou-se às autoridades centrais, que adotariam o mesmo procedimento três meses mais tarde em Pequim, contra a revolta de Tien Amen.

Três anos depois, aos 49, Hu seria transformado em exemplo nacional da política de renovação de dirigentes. Interessado em criar um símbolo concreto do novo perfil de dirigentes que o partido requeria, Deng Xiaping decidiu promover um jovem quadro para a Comissão Permanente do Politburo. Hu foi escolhido, entre 50 possíveis candidatos. Desde então, atua com rigorosa discrição. Não se envolve em disputas políticas ou polêmicas, não disputa espaço, não corre riscos. Espera sua hora.

Estabilidade ou ilusão?

Vista pela ótica dos planos de Deng, a China avança de vento em popa. Ao sucesso econômico soma-se uma impressionante estabilidade política. O ascenso da Quarta Geração foi a primeira transferência de poder feita sem grandes conflitos, desde a revolução, em 1949. Houve uma única disputa: Li Ruihuan, considerado favorável a eleições mais abertas ampla, deveria ou não permanecer na Comissão Permanente? Ela foi resolvida em favor do novo secretário-geral: Li ficou de fora, como queria Hu.

O problema é que o processo de transformação iniciado há duas décadas baseia-se numa previsão que parece hoje mera fantasia. Para que a China moldada por Deng possa avançar sem conflitos, o cenário ideal é o capitalismo idílico descrito por Jiang Zemin na abertura do 16º Congressso: uma globalização virtuosa, um crescimento constante da produção e do comércio internacionais, um mundo onde nenhuma potência pretenda se impor sobre as demais nações. Por contarem com uma conjuntura assim, os dirigentes chineses deram enormes passos rumo à abertura externa de sua economia. As exportações já representam 22% do PIB (contra 13,7% no Japão, 11% nos EUA ou 7% no Brasil). O capital externo tem grande influência no avanço dos setores de ponta. A adesão à Organização Mundial do Comércio, concretizada há dois anos, reduzirá ainda mais as barreiras alfandegárias e permitirá às corporações transnacionais ocupar espaço em ramos como bancos, telecomunicações e comércio de varejo.

Deng e seus seguidores calcularam que as relações com o grande capital internacional pudessem se manter harmônicas por muito tempo. À China interessa ter acesso a tecnologias e processos de produção modernos, as múltis não querem ficar distantes de um mercado de 1,2 bilhão de consumidores. Que ocorrerá, contudo, se uma depressão global derrubar os fluxos de comércio e investimentos? Ou se a Casa Branca, cada vez menos comprometida com “metas de luz e progresso”, enxergar na grande nação do Oriente um inimigo potencial a ser contido antes que se torne forte demais? Nesses casos, a China pode sofrer dificuldades graves inclusive no plano interno.
“Ajuste estrutural” e encruzilhada

É que junto com a prosperidade vieram, como é comum nas economias de mercado, as desigualdades e a pobreza. Baseado em Pequim, onde edita o jornal Dushu, o historiador Wang Hui escreveu em abril, para o Le Monde Diplomatique, um longo artigo sobre o que chama de “modelo chinês de ajuste estrutural”. Para atrair os capitais internacionais que fariam deslanchar sua economia, mostra Wang, os governantes chineses adotaram, ao longo das últimas decadas, políticas que atingiram os direitos sociais e a própria capacidade de intervenção do Estado. A maior parte das estatais foi privatizada, os direitos previdenciários foram reduzidos, surgiu uma legião de desempregados, sucessivos choques de preços multiplicaram a diferenças de renda entre classes sociais e regiões. No plano das idéias, desenvolveu-se uma modalidade particular de “pensamento único”: “Para a geração que cresceu após a Revolução Cultural, os únicos saberes válidos vêm do Ocidente, em particular dos Estados Unidos. A Ásia, a África e a América Latina, para não falar da Europa, saíram da órbita intelectual chinesa. O repúdio à Revolução Cultural tornou-se um meio de defender a idoologia dominante e a política governamental: toda crítica ao neoliberalismo é qualificada de “regressão irracional”, enquanto os críticos do socialismo e da tradição chinesa são mobilizados para justificar a adoção de modelos desenvolvimento ocidentais”, diz Wang
Enquanto a economia chinesa crescer em ritmo de “milagre”, os trabalhadores terão a esperança de superar os sacrifícios e prosperar. E se terminarem os tempos das vacas gordas? E se se avolumarem e ganharem eco, por exemplo, os protestos dos desempregados?
Nesse caso, Hu Jintao e seus companheiros estarão diante de uma encruzilhada. Embora filhos das reformas de mercado, são dirigentes de um partido que se orgulha de pertencer aos trabalhadores chineses, de estar presente em cada aldeia e em cada fábrica, de ter feito a maior revolução da História, de ser o responsável pela união nacional, pela modernização admirável e pela grandeza externa da China. Qual dessas tradições eles seguirão? Dessa resposta, que ainda está por ser dada, dependerão em grande parte as chances de construir um outro mundo.


Notas:
1. Além de Hu, de 59 anos, compõem a Comissão Permanente: Wen Jiabao (60), Wu Bangguo (61), Luo Gan (67), Zeng Qinghong (63), Li Changchum (58), Jia Qinglin (62), Huang Ju (64) e Wo Guanzheng (64)
2. A primeira foi a de Mao Zedong, líder da revolução chinesa; a segunda, a de Deng Xiaoping; a terceira, a do próprio Jiang Zemin