Laura Carlsen
Decifrando a Linguagem da Globalização
20 de janeiro de 2006
Programa de las Américas del International Relations Center (IRC)

O encontro promovido pela OMC em Hong Kong ilustrou amplamente quão difícil é alcançar um consenso quanto às regras do livre-comércio. O fato de que nenhum dos principais envolvidos aceite ceder minimamente - e oferecer aquilo que, no jargão das negociações, é conhecido como “deliverables”, ou seja, propostas para resolver itens particularmente importantes — é apenas um dos problemas.
O que torna cada vez mais evidente, entretanto, é que a OMC, e, na verdade, todo o conceito de globalização do livre-comércio, sofre de um problema de comunicação. A maioria dos textos em negociação é incompreensível para os ouvidos não treinados, ou seja, para qualquer indivíduo comum.
O glossário específico à OMC muda diariamente. Talvez isto não seja um problema para os negociadores governamentais, que encaram as siglas e as frases de efeito como se fossem notas taquigráficas acessíveis apenas a um grupo restrito. Entretanto, para os grupos que representam os cidadãos, este é um ponto que deveria causar preocupação.
Para que o debate sobre o comércio internacional se torne relevante e aberto, ele deve ser plenamente inteligível. No entanto, sua compreensão não depende apenas de uma observação atenta ou de estudo ou mesmo de interpretação; a linguagem da globalização precisa, antes, ser decifrada e desmistificada.
Por mais de uma década, a liberalização do comércio tem sido apresentada como o caminho para o desenvolvimento e uma meta a ser atingida por todos os países civilizados. Sua terminologia se tornou a linguagem aceita na economia e os seus conceitos formaram a espinha dorsal dos processos de reestruturação de sociedades inteiras.
Hoje, esse consenso já não existe nem nos países desenvolvidos, nem nos países em desenvolvimento. Mas a terminologia resiste teimosamente, impedindo a concepção de um sistema de regras para o comércio internacional que efetivamente funcione, além de descartar alternativas viáveis, que venham a substituir um sistema de livre-comércio arcaico e disfuncional.
Um exemplo bem claro desse fenômeno é o crescente debate sobre os mecanismos de gestão da oferta.
A espiral descendente dos preços das commodities agrícolas sob a globalização arruinou as vidas de milhões de pequenos produtores rurais. Não é surpresa que, dada a magnitude da tragédia humana associada a essa tendência, propostas de regulamentação da oferta para garantir que os preços deixem de cair abaixo dos custos de produção voltem a surgir como alternativas viáveis.
Entretanto, em vez de apresentar esse conceito de forma positiva, a OMC descreve a gestão do preço das commodities e da oferta como sendo responsável por “gerar desvios da direção correta”. A linguagem indica um certo constrangimento em se utilizar o termo “gestão da oferta” — sua mera menção é considerada maldita pelo sistema de livre-comércio há tempos. Ele se infiltra no debate como um mal necessário, uma impureza pragmática num sistema teoricamente puro.
Todos sabem que não se trata disso. O sistema de “livre-comércio” é visivelmente hipócrita, inconsistente e ineficaz. As discussões da OMC em Hong Kong deixaram bastante claras essas contradições.
Se, por um lado, os países desenvolvidos protegem seus setores mais sensíveis, por outro os países em desenvolvimento são forçados a engolir o acesso aos mercados. A linguagem da globalização inclui o sofisma mais caro do mundo: os preços pagos aos produtores são reduzidos devido aos subsídios governamentais oferecidos a fazendeiros, de modo a compensá-los pelo fato de que os preços internacionais não remuneram os custos de produção.
As imposições ideológicas do livre-comércio se parecem, com freqüência, como as prescrições morais de líderes religiosos andarilhos – faça como eu digo, não como eu faço.
Nesse contexto, os mecanismos de gestão da oferta, as salvaguardas e o tratamento especial que os países em desenvolvimento necessitam deveriam ser encarados como compensações pelas distorções geradas pelo fato de que o livre-comércio não é chamado pelo seu verdadeiro nome. Mas, em vez disso, estes mecanismos são vistos como uma caridade praticada pelos países ricos.
Existe aqui um outro artifício lingüístico utilizado pelos promotores do livre-comércio na OMC e outras negociações sobre o mesmo tema. Eles afirmam que os países em desenvolvimento têm apenas duas opções – ou eles enfrentam o desafio de se adaptarem à liberalização do comércio ou terão de retornar a seu lamentável passado protecionista.
Esta é uma falsa dicotomia. Mais uma vez, como ficou evidente nos debates promovidos em Hong Kong, a verdadeira dicotomia opõe o desenvolvimento ao modelo desigual de livre-comércio, como definido pelos países ricos.
Uma fórmula saudável de desenvolvimento deveria incluir: a proteção a setores essenciais da economia, combinada a uma liberalização racional; um governo que ofereça assistência técnica e infra-estrutura que ajudem a produção nacional e fomentem os mercados; e a proteção dos mercados locais e regionais — tudo isto sob a égide de um sistema multilateral transparente, democrático e que respeite as regras.
O debate sobre como criar esse tipo de sistema ainda é muito recente. Para que ele se amplie, a linguagem do comércio terá de se abrir para conceitos que já foram considerados heréticos e buscar termos novos, capazes de criticar cânones ultrapassados.
Como tem ficado claro nos últimos encontros de nível ministerial da OMC, a menos que todas as partes envolvidas – as nações industrializadas, aquelas que se encontram em nível intermediário, como a Índia e o Brasil, os países em desenvolvimento mais pobres e os representantes das organizações não-governamentais – comecem a empregar uma nova linguagem, distinta da retórica tradicionalmente usada para discutir o livre-comércio, não haverá nenhuma cooperação internacional, nenhuma regra comum e nenhum desenvolvimento sustentável global.
O que também fica claro é que, quer as forças econômicas dominantes queiram ou não, o debate está se ampliando. Agora é necessária vontade política para que as verdadeiras opções aflorem da linguagem falida do livre-comércio e do modelo fracassado de desenvolvimento imposto pela hoje frágil OMC.


Laura Carlsen, que apresentou esse relato sobre o encontro de Hong Kong, dirige o Programa das Américas do International Relations Center, cujo website é www.irc-online.org.