Zander Navarro[1]
'
Mobilização sem emancipação' — as lutas sociais dos
sem-terra no Brasil

(Santos, Boaventura de Sousa, Reinventando
a emancipação social
, Lisboa e São Paulo, 2001)

“(...) ¿Que tiene dueño la tierra? ¿Cómo así? ¿Cómo se ha de vender? ¿Cómo se ha de comprar? Si ella nos pertenece, pues. Nosotros somos de ella. Sus hijos somos. Así  siempre, siempre. Tierra viva. Como cría a los gusanos, así nos cría. Tiene huesos y sangre. Leche tiene, y  nos da de mamar. Pelo tiene, pasto, paja, árboles. Ella sabe parir papas. Hace nacer casas. Gente hace nacer. Ella nos cuida y nosotros la cuidamos. Ella bebe chicha, acepta nuestro convite. Hijos suyos somos. ¿Cómo se ha de vender? ¿Cómo se ha de comprar?”  (Arguedas, 1970, apud  Galeano, 1982: 256)

“(...) A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda metade deste século, e que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato (...) na década de 1930, a recusa dos camponeses a  desaparecer ainda era usada correntemente como um argumento contra a  previsão de Karl Marx de que eles se extinguiriam.” (Hobsbawm, 1996: 284)

Introdução

 A história social e política do Brasil no período contemporâneo, especialmente a partir dos anos finais do ciclo militar (1964-1985), ou seja, entre o fim da década de 1970 e a primeira metade da década seguinte, estendendo-se até os nossos dias, apresenta um conjunto de processos sociais os quais, se alguns foram ou têm sido comuns igualmente a outras sociedades latino-americanas no mesmo período, outros, contudo, são surpreendentes e até inesperados. Dentre os primeiros aspectos salienta-se, como tem sido destacado por diversos autores, a rapidez da consolidação de um regime político inspirado nos limites relativamente estreitos de uma democracia primordialmente eleitoral.[2] Ou então, ainda no primeiro grupo de processos, repetidos em outros países da América Latina, mudanças sociais intensas (como a urbanização acelerada, por exemplo) ou, no campo da economia, os processos inflacionários crônicos, apenas parcialmente vencidos e, também, a adoção generalizada de políticas de “ajuste estrutural”, a partir dos anos oitenta, preconizadas por organismos financeiros internacionais, as quais geralmente acabaram integrando forçadamente, e de forma rígida, as economias do continente aos circuitos financeiros e comerciais internacionais, fazendo da região um dos casos paradigmáticos do fenômeno da globalização.

Por outro lado, se analisado o conjunto de processos sociais que caracterizou o Brasil no mesmo período, dificilmente deixará de ser consensual a identificação da emergência das lutas sociais em áreas rurais, particularmente aquelas empreendidas pelos chamados “sem-terra” como as mais emblemáticas e distintivas do período, lutas sociais inesperadas, em especial se comparadas com os diagnósticos típicos do período passado, inclusive entre marxistas, usualmente céticos quanto às possibilidades de organização política conseqüente por parte de trabalhadores rurais e camponeses.[3] O nascimento e posterior desenvolvimento, na metade da década de 1980, do “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, tornou gradualmente conhecida sua sigla (“MST”) e outros de seus ícones públicos, especialmente sua bandeira vermelha e os típicos bonés utilizados por seus militantes. As lutas sociais empreendidas por esta organização, que nasceu como um movimento social decorrente do processo de transição política experimentado pelo Brasil a partir do final da década de 1970 (trânsito posteriormente sinalizado pela ascenção do primeiro presidente civil, em 1985), concretizam provavelmente um dos mais surpreendentes processos sociais em curso. A organização, neste artigo, será doravante tratada como “Movimento”, “MST” ou, simplesmente, “a organização dos sem-terra” (a distinção conceitual entre movimento social e organização formal não sendo analisada neste texto, senão rapidamente, não obstante a sua decisiva importância política para a compreensão do Movimento). Normalmente mais ativo no Sul do Brasil nos anos oitenta, na década seguinte tornou-se gradativamente uma organização de grande visibilidade nacional, estruturando-se na maioria dos estados brasileiros, sua atuação despertando crescente interesse, inclusive internacionalmente.[4] As análises sobre o MST, embora tivessem sido multiplicadas celeremente nos anos recentes, ainda são, contudo, largamente insuficientes. No período, estudos e interpretações produzidas têm sido, em geral, ou meramente idealizantes e superficiais, normalmente dedicadas muito mais a registrar, acriticamente, as ações externas e públicas do Movimento, associando–as às improváveis potencialidades “revolucionárias” dos sem-terra e assim confundindo-se com a própria literatura apologética da organização ou, então, são estudos acadêmicos centrados em ambientes restritos de ação dos “sem-terra”, normalmente assentamentos rurais, sobre os quais já existe, no país, um grande número de estudos realizados. Um terceiro grupo de estudos, com o objetivo de analisar o MST sob enfoque mais ambicioso, ultrapassando limites estaduais e interpretando-o nacionalmente à luz dos processos sócio-políticos e econômicos mais recentes, ainda é notavelmente rarefeito, refletindo as dificuldades metodológicas de tais empreitadas.[5] Como resultado, o conhecimento sobre o Movimento, no Brasil (e internacionalmente), curiosamente, é ainda largamente inadequado e parcial, o que tem produzido um amplo desencontro analítico sobre tal fenômeno social, independentemente da perspectiva teórica e/ou política, repetindo-se as análises marcadas pelo encantamento ideológico e pela superficialidade. Tais desencontros, de fato, são mais amplos, pois como ressaltou José de Souza Martins, um dos mais experientes especialistas do mundo rural brasileiro, envolvem quase todos os atores envolvidos nas disputas sociais no campo, inclusive as agências de mediação que pretendem representar os sem-terra no quadro da “política em geral”. Conforme este autor, “(...) O silêncio dos pobres não vem apenas da clausura cultural em que vivem. Vem também da usurpação da palavra, do querer e do esperar por parte daqueles que, ao pretenderem generosamente ser solidários, acabam impondo-lhes um novo e mais grave silêncio, o da fala postiça e inautêntica, anômica”  (Martins, 2000a: 69). 
O Movimento, formalmente nascido em janeiro de 1984, embora tenha emergido, de fato, anos antes, a partir da abertura política empreendida no âmbito do ciclo militar, já no final dos anos setenta, é o produto social e político de um conjunto de fatores, que serão descritos nas seções seguintes. Tais determinantes incluem desde as condições políticas repressivas do período autoritário, e o ativismo político daí decorrente, às ações de mobilização e politização organizadas por setores radicalizados do clero católico, dos efeitos da vigorosa modernização agrícola da década citada à história política das comunidades rurais do Sul do Brasil (onde o Movimento primeiramente organizou-se), ou ainda, da abertura política iniciada em 1979 aos processos sociais que acabaram impulsionando um “ciclo de protesto” em áreas rurais daquela região brasileira. É talvez uma das mais fascinantes trajetórias sócio-políticas que a história brasileira já produziu, pois nos últimos vinte anos o MST tem conseguido manter-se suficientemente ativo para influenciar a agenda pública sobre o mundo rural e empreender ações coletivas de grande repercussão, tornando-se um ator de referência obrigatória em todos os assuntos ligados à questão agrária brasileira. Extremamente ágil, o Movimento igualmente desenvolveu processos de organização e dinâmicas internas de estruturação que são justificadores de sua força política, embora sejam mecanismos de sustentação quase sempre desconhecidos, inclusive, curiosamente, até mesmo pelos setores acadêmicos ligados à área correspondente, muito mais atraídos pelas ações externas e pela visibilidade pública do MST.
Três advertências iniciais são necessárias, para melhor situar o corpo de argumentos deste artigo e delimitar claramente seus objetivos. Primeiramente, opta-se aqui por adotar uma distinção analítica, com claras implicações políticas, entre a “organização dos sem-terra”, englobando o conjunto de seu corpo dirigente principal e seus militantes intermediários, diretamente ligados à organização como seus funcionários, e a ampla base social das famílias “sem-terra”, neste caso incluindo os pequenos produtores agrícolas pauperizados, proprietários ou não (neste caso, meeiros, pequenos arrendatários, parceiros), detentores de diminutas parcelas de terra, insuficientes para a sua reprodução social, além das dezenas (talvez centenas), de milhares de famílias rurais pobres que vagam pelos campos brasileiros, à procura de ocupação e renda e, também, parte dos assalariados rurais, que em algumas regiões agrárias têm sido atraídos para as fileiras do MST. O foco central deste artigo dirige-se, especialmente, à organização e seu corpo diretivo, sua história, estratégias de ação e seu repertório de escolhas e decisões, ao longo do período analisado, inclusive porque, como se argumentará, muitas vezes é significativa a distância entre a base social e a agenda discursiva e as formas de ação social escolhidas pela direção, o sucesso mobilizador do MST sendo explicado por outras razões, diferentes da adesão consciente e voluntária de sua base social. O segundo aspecto que aqui é salientado refere-se ao “campo de processos sociais” sob interpretação. Deve ser acentuado que este texto não é dedicado à “análise social” no Brasil contemporâneo, ou à discussão da “questão agrária brasileira” lato sensu. Os determinantes mais gerais, de ordem econômica ou sócio-políticos, são sinteticamente apresentados e introduzidos no texto tão somente para situar contextos e conjunturas, pois a centralidade analítica remete-se à organização dos sem-terra, inclusive secundarizando (e, às vezes, sequer mencionando) o conjunto de outras organizações populares do campo brasileiro, as relações estabelecidas, a natureza dos conflitos existentes entre tais organizações. Embora crucial, também não se discutirá pormenorizadamente o papel do Estado e suas políticas, senão também contextualmente, apenas sendo indicada a natureza das ações governamentais, em períodos específicos. Em face da imensa variabilidade da rede de relações construída e modificada, ao longo do tempo, entre tais atores, sua menção assumirá aqui contornos mais episódicos, meramente para o suporte dos argumentos apresentados. Finalmente, como se perceberá facilmente, as evidências empíricas apresentadas são, quase todas, relacionadas a situações do Sul do Brasil (a maioria, gaúchas), sendo este o terceiro esclarecimento prévio, que estabelece os limites deste artigo. Se de um lado refletem a experiência como pesquisador do autor do texto, deseja-se salientar, contudo, que as ilustrações empíricas extraídas da história do MST no Rio Grande do Sul (ou no Sul do Brasil) são largamente emblemáticas e representativas para poderem ser, quase sempre, generalizadas para o restante do país. Nascido no Brasil meridional, a organização dos sem-terra tem no Rio Grande do Sul a sua mais antiga e sólida estruturação e, de fato, praticamente todas as iniciativas arquitetadas pelo MST foram experimentadas primeiramente neste estado, que tem servido, assim, de “laboratório” para as diferentes iniciativas. Ocorreu assim com as cooperativas do Movimento, os esforços no campo da educação, a constituição das escolas de formação e o treinamento de novas formas de luta, ao longo do tempo. Espera-se, desta forma, que os argumentos centrados em evidências empíricas localizadas neste estado e/ou região possam, quase sempre, ser passíveis de generalização para o restante do Brasil.
Outra observação preliminar, imperativa para circunscrever os limites deste artigo, refere-se à própria noção de “emancipação” adotada neste artigo. Diferentemente de outras possibilidades conceituais (por exemplo, a clássica noção habermasiana de “conhecimento emancipatório”), a idéia de emancipação, neste texto, é informada restritivamente por uma dimensão política que refere-se, precisamente, às chances das classes subalternas e os grupos sociais mais pobres, a partir de diferentes identidades, de construírem, de forma autônoma, diversas formas de associação e representação de interesses e, mais relevante, poderem adentrar o campo das disputas políticas e aí exercerem seu direito legítimo de defender reivindicações próprias e buscar materializar suas demandas, sem o risco de eliminação ou constrangimentos politicamente ilegítimos materializados por grupos sociais adversários. Esta proposição significaria um sistema político que incorporaria o conflito social como parte integrante de sua própria constituição e legitimidade, diferentemente da tradição brasileira de lidar com o conflito social como uma anomalia a ser combatida por todos os meios repressivos. Em uma sociedade tão marcadamente desigual, se o conflito não é parte constitutiva da política, as classes subalternas jamais terão a oportunidade de alterar as diferentes assimetrias existentes (e, se reais a autonomia das formas de representação e a legitimidade do conflito, certamente estaria sendo aberta a senda de uma “democracia emancipatória”). Desta forma, tal noção distancia-se, inteiramente, da ambiciosa idéia (fantasiosa nesta quadra da história) da correspondência entre emancipação e a “grande transformação societária”, marcada pela profunda ruptura política com a “ordem existente”. Ou seja, neste texto, “emancipação” não é  sinônimo de ruptura anti-sistêmica e, menos ainda, de uma vaga ordem política socialista, mas, em perspectiva restrita, adere-se aqui à idéia da necessidade, relativamente óbvia no caso brasileiro, de dar significado real a tal conceito através da possibilidade da participação e da representação política (insista-se, de forma autônoma, sem o recurso ao líder messiânico, aos partidos políticos que abafam os interesses dos grupos subalternos, ou outra representação falsamente mediadora) e, igualmente, à concretização da presença de tais grupos no sistema de disputas políticas que os aceite e integre de forma legítima. Como se argumentará posteriormente neste artigo, mesmo sob esta limitada noção de emancipação, o enorme sucesso do MST, quando mobiliza grupos sociais “sem-terra”, para construir sua arquitetura de ações coletivas, sequer remotamente tem se aproximado da noção (mesmo que restrita) de emancipação acima referida — o que justifica, aliás, o título do artigo. Ao adotar a perspectiva totalizante dos grandes esquemas políticos das tradições ortodoxas do marxismo, que desqualificam as diferenças e alteridades sociais, além de impedir a autonomia das formas organizacionais microsociais, locais e regionais, pois ameaçariam a existência de sua própria dimensão nacional, o MST, enquanto uma organização política, tem, de fato, atuado mais como freio à emancipação dos mais pobres do campo, estes últimos servindo, muito mais, aos propósitos, nem sempre explícitos, do corpo dirigente da organização.     

            Neste artigo, é apresentado inicialmente o contexto macroeconômico e as transformações estruturais da agricultura brasileira no período, indicando os estreitos limites sob os quais as organizações sociais dos mais pobres do campo têm atuado e apontando, em especial, um conjunto de mudanças mais gerais que têm significado, em áreas rurais brasileiras, crescentes impossibilidades sociais e econômicas para os pequenos agricultores e os assalariados do campo. A segunda seção, por sua vez, apresenta uma concisa história deste movimento social, destacando inicialmente os determinantes originais que produziram o nascimento de formas de protesto social no Sul do Brasil, gerando diversos movimentos sociais rurais, entre os quais a organização dos sem-terra. A seguir, na mesma seção, apresentam-se as fases mais salientes e as características distintivas de sua evolução nas últimas duas décadas, procurando demonstrar que o desenvolvimento do MST tem produzido, nos anos mais recentes, a opção por formas de organização interna, opções políticas e estratégicas e, também, uma “leitura de realidade” que é extremamente problemática, seja em relação às demais organizações do campo, seja em relação a seus próprios integrantes, alternativas que a organização dos sem-terra tem abraçado, em particular, em função de sua crescente força política e de suas orientações ideológicas. Finalmente, antes das conclusões que fecham este artigo, a terceira seção sintetiza um pequeno conjunto dos dilemas atualmente vividos pelo Movimento, salientando-se alguns aspectos mais críticos e controvertidos da ação política desta organização. Ou seja, nesta seção, antes de serem mostrados os resultados mais destacados e notáveis da ação política e organizativa dos sem-terra — talvez já suficientemente conhecidos —  o que é apresentado e rapidamente discutido, por não ter sido ainda introduzido (aliás, sequer reconhecido como existente pela maior parte dos analistas e aderentes do Movimento) é exatamente alguns aspectos da “face obscura” do Movimento. Espera-se que a seção possa assim contribuir para ampliar o conhecimento sobre esta organização, particularmente suas opções políticas que são, quando menos, controvertidas e, especialmente, escolhas políticas que poucas chances parecem ter de construir uma real emancipação dos pobres no Brasil rural, considerando-se a conjuntura dos anos recentes e suas particularidades, como se indicará posteriormente.

Brasil: o mundo rural e as transformações econômico-estruturais
no período contemporáneo
(6) [6]

           
O desenvolvimento agrário brasileiro, nos últimos trinta anos, talvez possa ser demarcado em três períodos distintos, durante os quais modificou-se fortemente a face de variadas regiões, alterando seu desenvolvimento e impondo não apenas novos desafios para os agricultores e as organizações do mundo rural mas, igualmente exigindo a formulação de interpretações inovadoras acerca do seu desenvolvimento. O primeiro desses períodos promoveu a euforia da modernização produtiva da década de 1970, quando os governos militares empreenderam uma inédita transformação de algumas regiões agrárias brasileiras (em especial, o Sudeste e o Sul do país, pois o populoso Nordeste, onde concentra-se historicamente a maior proporção de pobres rurais, sendo alvo de intervenção apenas em sub-regiões específicas), retirando-as de seu secular primitivismo tecnológico e inserindo-as em circuitos propriamente capitalistas, o que não apenas permitiu a constituição de novas estruturas de produção, mas também o desenvolvimento de uma nova racionalidade de gestão agrícola, decorrente da intensa mercantilização da vida social, então concretizada.

            Esgotada esta primeira fase de mudanças, simbolizada pelo ano de 1981, quando foram modificadas as normas financeiras do primeiro período (com a profunda alteração da política de crédito rural que sustentava a expansão produtiva), os anos seguintes foram também distintos. A década de oitenta representou, de fato, um outro período singular, com as evidências de um desajuste macroeconômico persistente e, como resultado, uma crescente deterioração dos aparatos institucionais relacionados ao mundo rural, além do aprofundamento da incapacidade financeira do Estado de manter os mecanismos criados no período anterior — em especial, aqueles relacionados aos reclamos de financiamento da produção nas condições antes estabelecidas (ou seja, crédito rural abundante e de baixo custo), acoplado a programas específicos de aperfeiçoamento do “negócio agrícola” (7). [7]

            O período mais recente, por sua vez, introduziu novos contornos econômicos e políticos, identificando uma terceira e diferente etapa no desenvolvimento agrário brasileiro. Nesses anos, com o forte recuo do Estado e suas políticas para o meio rural (movimento de retirada iniciado na década passada), modificou-se ainda mais o “ambiente social e produtivo” no campo brasileiro, não apenas requerendo a reformulação das compreensões analíticas usuais mas, principalmente, materializando novos desafios e impasses que têm confrontado os próprios produtores (especialmente os mais pobres), provavelmente em magnitude sem precedentes. Tais situações, que no geral agravaram as condições de trabalho e produção no campo, têm requerido, por certo, a formulação de agendas fortemente inovadoras por parte das organizações representativas do mundo rural, como forma de contornar o desafiador momento atualmente apresentado aos produtores rurais brasileiros.

            A década passada abriu um capítulo novo na história econômica e no desenvolvimento social brasileiro, cujos determinantes mais gerais são ainda objeto de aceso e intenso debate mas, certamente, remetem-se às reorientações macroeconômicas, tecnológicas e políticas em curso no mundo (normalmente, sob o rótulo, correto ou não, da noção de “globalização”). Como marcas principais do período recente, vários autores sintetizam essas profundas mudanças, típicas do final deste século, hoje caracterizando a maioria das nações capitalistas de desenvolvimento avançado ou intermediário. Dentre tais mudanças recentes, ressaltam-se (i) o desemprego, que passa a ser estrutural; (ii) a centralidade, no sistema econômico, do monetarismo e do capital financeiro; (iii) a terceirização estrutural, que assim deixa de ser acessória; (iv) a transformação da ciência e da tecnologia em forças produtivas, e não mais um mero suporte do capital; (v) a dispensa e rejeição política da presença estatal, não apenas no mercado, mas até mesmo no âmbito das políticas sociais e, como resultado, as políticas de privatização passam também a ser estruturais; (vi) a transnacionalização da economia, o que acentua igualmente a desnecessidade do Estado Nacional; (vii) a antiga distinção entre países do Primeiro e do Terceiro Mundo é substituída pela existência, em cada bloco, de uma visível e crescente divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de pobreza absoluta e (viii) finalmente, este conjunto de condições materiais corresponde a um imaginário social e político, neste final de século que, usualmente, designou-se de neoliberalismo.

           E o campo brasileiro, sob o impacto dessas mudanças? Neste caso, em especial em suas regiões agrárias mais desenvolvidas e subordinadas mais rigidamente aos circuitos econômicos e financeiros,  principalmente aquelas nascidas do intenso processo de modernização antes citado (o que largamente exclui o Nordeste e o Norte do país), talvez seja possível sintetizar algumas das principais transformações que vem sendo observadas, nos últimos anos e, em conseqüência, esboçar alguns dos desafios e impasses do presente. Do , por exemplo, o que parece ser atualmente relevante é a verificação de um patamar de desenvolvimento alcançado, por este ângulo, que parece ser inteiramente “satisfatório” à demanda interna, pois os intensos processos de urbanização dos anos sessenta e setenta, embora arrefecidos nos anos recentes, “estabilizaram” a procura de alimentos e matérias-primas e, assim, a exigência agregada de produção agrícola parece hoje estar inteiramente determinada por um padrão de distribuição de renda que, por sua vez, não parece ser passível de alterações expressivas em prazo relativamente curto. Bastaria associar tal fator à multiplicação de assentamentos rurais no Brasil e a necessidade das famílias rurais assentadas de vender seus eventuais excedentes, neste contexto de empobrecimento da agricultura e de queda dos preços pagos para perceber, por exemplo, os crescentes limites à viabilização econômica destas novas áreas.

            Em conseqüência, é pelo ângulo econômico-comercial que as transformações mais notadas estão sendo materializadas, acarretando impactos significativos na atividade agropecuária. A crescente abertura comercial (e a constituição do Mercosul) vem modificando fortemente as regiões produtivas, especialmente no Sul do país, afetando em particular os agricultores familiares mais pobres. No geral despreparados para confrontar-se com ambientes comerciais mais concorrenciais, os agricultores têm encontrado dificuldades crescentes para manter suas atividades e assegurar receitas que garantam a continuidade de seus empreendimentos. A intensificação das trocas comerciais tem produzido um barateamento geral dos preços dos produtos agrícolas, reduzindo a renda rural e generalizando uma situação crítica nos ambientes produtivos da agricultura do país, o que afeta a dinâmica econômica dos municípios e regiões dependentes das atividades rurais. A partir de 1994, com a implantação do “Plano Real”, que sobrevalorizou o câmbio (pelo menos até o início de 1999), também os setores agroexportadores foram ainda mais penalizados, por esta dificuldade adicional (8).[8]

           Quanto às ocupações rurais — e esta tem sido outra modificação importante, experimentada especialmente a partir da década de 1990 —, são de duas ordens as mudanças recentes. Primeiramente, uma situação relativamente nova em que se atingiu, fruto dos processos antes mencionados, a um aparente “teto de demanda de trabalho” (de base agrícola), que somente tem sido ampliado quando as estatísticas são agregados nacionais, pois novas regiões de produção (no Centro-Oeste e no Norte do Brasil) são lentamente incorporadas ao sistema produtivo agrícola nacional. Nas regiões agrárias consolidadas e tradicionais (como o Nordeste rural, em grande parte), no entanto, este esgotamento do padrão do emprego agrícola é visível. Em diversas regiões do interior, a redução das formas de ocupação rural tem estimulado, por certo, a adesão ao MST, pois constitui-se uma “população sobrante”, que parece não poder recorrer mais, nem às cidades (onde as chances de emprego também reduziram-se) e nem às regiões de fronteira “livre”, no Norte do país, em vista da apropriação privada dessas terras, em larga medida, impedindo o fácil acesso à terra em tais regiões.

           O segundo aspecto importante a salientar em relação à nova estrutura do trabalho rural não é ainda suficientemente conhecido, pois sua investigação é recente, e refere-se à aparente ampliação das possibilidades de ocupação em áreas rurais, mas em atividades não-agrícolas, cujo crescimento tem sido expressivo nos anos recentes. Neste sentido, conforme já enfatizado por diversos estudiosos, o meio rural brasileiro deixou de ser principalmente agrícola e nem o comportamento do mercado de trabalho rural está mais exclusivamente associado ao calendários das atividades agrícolas, pois desenvolve-se crescentemente um conjunto de atividades não-agrícolas que determina, cada vez mais, a dinâmica das ocupações em áreas rurais do país.

Quanto às mudanças políticas, na mesma década, vêm obedecendo a três determinantes principais. Primeiramente, e também como decorrência das modificações produtivas dos últimos trinta anos, o (i) relativo enfraquecimento das organizações rurais mais tradicionais, tanto dos grandes proprietários territoriais como aquelas representativas dos interesses dos pequenos produtores, englobados usualmente pelo sindicalismo rural. O resultado tem sido a proliferação de novas formas de organização no meio rural brasileiro, desde a emergência de movimentos sociais, que eventualmente institucionalizaram-se em organizações, como é o caso do MST, à multitude de pequenas formas organizativas que tem se expandido no âmbito local e/ou regional passando, por certo, pelas reorientações das representações dos grandes proprietários de terras e empresários rurais. Destaca-se, em relação a estas últimas, o virtual desaparecimento da organização patronal que, em certo período, desempenhou o papel de contraponto dos latifundiários ao emergente MST. A UDR (União Democrática Ruralista), formada em 1986, deixou de existir posteriormente e, sendo reaberta no final dos anos noventa, é apenas pálida imagem da organização de grandes proprietários de terra que, nos seus anos iniciais, afrontou o tema da reforma agrária proposto pelo primeiro governo civil após o ciclo militar e realizou um grande número de ações confrontacionais destinadas a eliminar o Movimento e as organizações populares do campo. O virtual desaparecimento da UDR é, igualmente, um claro sinal do enfraquecimento generalizado da agricultura comercial tradicional e do desatrelamento de seus inúmeros benefícios financeiros antes formalizados pelas políticas públicas. Quase sempre, as análises atualmente realizadas têm ignorado este fato inédito em nossa história agrária, qual seja, o enfraquecimento sem precedentes de uma classe social que, desde sempre, dominava o campo brasileiro de forma virtualmente absoluta, representando inclusive o Estado, o que deixou de ocorrer nos anos mais recentes.

Ainda no campo da “política em geral”, é também relevante citar dois outros aspectos de notável significação a partir dos anos noventa: (ii)a descentralização política inaugurada pela promulgação da Constituição Federal, em 1988, é um desses fatos expressivos, pois esta mudança tem remetido aos municípiosuma crescente parcela de responsabilidades, de ordens variadas, a maior parte das vezes, no entanto, sem contrapartidas orçamentárias. Se este processo de redistribuição de responsabilidades formais prosseguir e consolidar-se, como parece ser a tendência mais geral, o município, cada vez mais, passará a ser o ambiente  da atuação dos diferentes atores sociais ligados ao mundo rural. Esta é uma das razões centrais para explicar o (re)surgimento da demanda social de “desenvolvimento rural” em tantas regiões agrárias, rapidamente incorporada à agenda das organizações de trabalhadores rurais e pequenos produtores (escapando, portanto, à quase sempre inacessível formulação federal e introduzindo as formas de ação e disputas sociais para um ambiente onde são maiores as probabilidades de intervenção e influência). Ao privilegiar a ação nacional e a homogeneidade de sua agenda em todo o território, algumas organizações do campo (como o MST) encontram situações de óbvios desacertos políticos e fragilização de suas ações. Em vista da imensa heterogeneidade econômico-estrutural e social existente no campo brasileiro (acentuada pelo processo de modernização seletivo dos anos setenta), políticas diferenciadas, inclusive em relação à reforma agrária, representam uma relativa obviedade, atualmente, embora ignorada pela maior parte das organizações rurais. 

Assim, o outro e terceiro fator de ordem política a ser ainda citado refere-se (iii) à recente aceitação governamental da noção de “política diferenciada” para o mundo rural, com a expressão “agricultura familiar” ganhando, na presente década, um estatuto político-institucional antes inexistente. Independentemente dos problemas de natureza teórico-conceitual eventualmente associados a esta última expressão, o fato é que pela primeira vez em nossa história o mundo rural passou a ser visto de forma diferenciada, com os agentes sociais rurais não mais universalizados na genérica categoria de “produtores”. A manutenção desta última noção, meramente ideológica, não permitira, anteriormente, a segmentação, pelo menos, dos produtores rurais patronais, de um lado e, de outro, o enorme e multifacetado universo dos produtores que centram sua atividade agrícola no trabalho da família, raramente utilizam trabalho contratado, orientam-se pela produção de um nível de renda que, principalmente, reconstitua as condições de produção e reprodução social (e não, como os proprietários de corte empresarial, motivados pela “taxa média de lucro” vigente), entre outras características já demonstradas pela literatura. A introdução da noção de “agricultura familiar”, a indicar um conjunto social de interesses próprios, padrões de sociabilidade diferenciados e um específico no mundo rural, é provavelmente a mais extraordinária mudança político-institucional nos anos recentes, pois poderá oportunizar novas e promissoras possibilidades de ação política e de intervenção no campo brasileiro. Como se indicará posteriormente, acuado pelo relativo esgotamento de suas formas de luta e o tema geral da “reforma agrária”, especialmente nos últimos três anos, o MST gradualmente modificou sua agenda política, ampliando-a para os “temas emergentes”, como a política agrícola, o debate sobre OGMs e, ainda mais recentemente, o debate sobre as relações comerciais internacionais simbolizadas pela controvérsia, na América Latina, acerca da constituição de uma associação intercontinental de livre comércio e os temas relacionados à globalização (o exemplo desta mudança sendo a presença do Movimento entre o reduzido grupo de entidades responsáveis pela organização do chamado “Fórum Social”, realizado na cidade de Porto Alegre, em janeiro de 2001).
  
2. Concisa história do MST (1980-2000)

2.1 O contexto original

Assim como ocorreu em outros países da América Latina no período do pós-guerra, também no Brasil contemporâneo é possível identificar diversos momentos mais expressivos em que as populações rurais, excluídas politicamente e subordinadas economicamente, puderam exercer o direito de mobilizar-se e organizar-se, e assim adentraram o espinhoso e complexo campo da política, em consonância com o que alguns autores definiram como “ciclos de protesto” (Tarrow, 1994). Usualmente aceita-se que, no caso do Brasil, são dois esses momentos. No primeiro, englobando parte dos anos 50 e os anos iniciais da década seguinte, encerrando-se bruscamente com o golpe militar de 1964, observou-se pela primeira vez a constituição e a multiplicação de sindicatos de trabalhadores rurais, que mobilizavam principalmente os assalariados das regiões comerciais do país e, também, a emergência de ligas camponesas, que abraçaram primordialmente as demandas de pequenos produtores, geralmente não-proprietários, especialmente no Nordeste brasileiro. Além disto, como resultado da liberalização política característica do populismo daquela época e, igualmente, das transformações econômicas no meio rural, outros atores, como o Estado, os partidos políticos e instituições como a Igreja Católica, entraram vigorosamente na cena política, disputando influência e o controle do processo de organização dos “pobres do campo”, além de propor projetos políticos de mudança ou de continuidade que, com o tempo, tornaram-se crescentemente polarizados entre si. Como resultado, a chamada “questão agrária” acabou por tornar-se um importante elemento detonador do golpe militar, que derrotou as forças políticas que propunham mudanças estruturais no País.

Outro momento expressivo da (re)emergência dos movimentos populares no meio rural do Brasil começou a se materializar no final da década de 1970, decênio aliás caracterizado, de um lado, por um inédito padrão de violência rural e, de outro lado, por processos de modernização e desenvolvimento capitalistas igualmente sem precedentes. A partir daqueles anos, o movimento sindical de trabalhadores ligado à estrutura oficial passou a mostrar-se mais dinâmico e, aos poucos, também constituiu-se um outro ramo competidor, que alguns anos depois se vincularia à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Outros eventos, no início dos anos 80, acabariam por levar à constituição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reintroduziu agressivamente a “bandeira” da reforma agrária no cenário político brasileiro. Além, certamente, de várias outras formas de expressão organizacional mais regionalizadas, como movimentos de mulheres rurais, de agricultores ameaçados pelo desenvolvimento de grandes obras públicas (como hidroelétricas), de pequenos produtores reivindicando acesso a políticas do Estado, etc. Da mesma forma, e como resultado das extraordinárias transformações do meio rural, um processo acelerado de mercantilização das atividades produtivas acarretou uma crescente diferenciação social, especialização da produção e integração aos novos complexos agroindustriais formados no período, criando novos interesses e a necessidade de novas formas de representação e estimulando diversas ações coletivas por pequenos produtores e trabalhadores rurais.

Os determinantes principais que contribuíram para a emergência e o desenvolvimento desses novos movimentos sociais rurais, iniciando-se pelo Sul do Brasil (e no Rio Grande do Sul em particular), entre o final da década de 1970 e os anos posteriores, poderiam compor uma longa lista, incorporando desde elementos como a história de participação política naquele estado, a existência de uma “cultura de organização” que as comunidades rurais tradicionalmente apresentam ou, ainda, “elementos reativos”, como a oposição ao controle exercido pelas elites locais. Nesta seção se argumentará, contudo, que esses movimentos sociais na região citada resultaram principalmente de três fatores, como se descreve: a liberalização política do período, nos anos finais do ciclo militar; as mudanças estruturais na economia agrária dos estados que modernizaram sua agricultura (basicamente, o Centro-Sul do Brasil) e seus impactos sociais (antes rapidamente referidos), além da ação de setores progressistas da Igreja Católica, inspirados inicialmente pela temática dos conflitos no campo, que cresceram exponencialmente nos anos setenta, posteriormente, já na década seguinte, emoldurados pelos aparatos discursivos propostos pela Teologia de Libertação, fatores esses que exerceram influência diferenciada no tempo e no espaço agrário (Navarro, 1996). Por exemplo, os efeitos das políticas públicas visando a modernização agrícola variaram notavelmente segundo os vários estados brasileiros e, inclusive, dentro de cada estado. Em algumas unidades da federação certas áreas agrícolas alteraram extraordinariamente o seu padrão de uso da terra, de apropriação tecnológica, de relações de trabalho e de utilização e acesso às políticas do Governo Federal, enquanto outras, embora crescentemente vinculadas a circuitos comerciais, muito pouco modernizaram as suas unidades de produção. A materialização dos efeitos combinados desses três fatores, particularmente nos estados do Sul, deve-se às características específicas da agricultura nesta região brasileira. São estados com forte presença de agricultores familiares e onde a Igreja Católica tem presença igualmente expressiva em termos de mediadores e estruturas físicas, provavelmente sem comparação com outros estados brasileiros (em vista da histórica presença da Igreja exatamente entre as comunidades rurais, aí recrutando filhos de agricultores para a carreira religiosa e, também, contando com o apoio material das famílias rurais para construir igrejas, casas paroquiais, seminários e inclusive a sua manutenção ao longo do tempo). O processo de modernização dos anos setenta, antes rapidamente citado, integrou a maior parte dessas famílias rurais aos diferentes circuitos econômicos e financeiros e, quando esgotado, criou crescentes problemas de reprodução social e permanência produtiva, fazendo inevitável uma aliança entre o braço rural da Igreja Católica, representado pela Comissão Pastoral da Terra (com seus mediadores oriundos, precisamente, da agricultura familiar) e as nascentes organizações populares do período, como as entidades sindicais e os movimentos sociais, como o MST. Somente após a sua consolidação nos estados do Sul, durante a maior parte dos anos oitenta, é que foi possível, gradualmente, para estas novas organizações, ampliar seu raio de ação para os demais estados, o que ocorreu na segunda metade daquela década e, em especial, a partir dos anos noventa. 

Esta ação diferenciada também pode ser notada em relação à Igreja Católica e seu proselitismo em áreas rurais. Não obstante as orientações gerais, o fato é que a influência de mediadores religiosos, concretamente, se definia muito mais pelo comportamento do bispo responsável pela diocese ou então pelas definições norteadoras da ordem à qual se vinculava o(a) religioso(a). É por esta razão, entre outras, que tais mediadores distribuíram-se irregularmente pelo espaço agrário e, em conseqüência, o papel desses religiosos como animadores da organização popular no campo também sofreu significativa e aleatória variação.

2.2 Os movimentos sociais rurais e os impactos sociais e políticos de sua  história

Uma breve verificação, anos depois da emergência das forças sociais rurais antes citadas, aponta para variados resultados, alguns de evidenciação mais fácil, outros nem tanto, por adentrarem terrenos de difícil visibilidade, embora reais, pois percebidos a partir de diversos e difusos “sinais”. Talvez o fato social de maior significação tenha sido a formação de uma geração de militantes sociais, antes marginalizados no sistema político, que passaram a participar de âmbitos diferenciados e desta forma, em graus distintos, têm sido capazes de influenciar, impor visões novas da realidade social, representar grupos sociais e, muitas vezes, “animar” processos de mudanças, como se descreverá sinteticamente a seguir.

A importância da formação de uma geração de militantes sociais e dirigentes rurais em áreas agrárias do Brasil é de difícil mensuração, pois requeriria exercício de pesquisa e análise por demais ambicioso, mas suas evidências são inúmeras e a breve descrição posterior deste artigo talvez contribua para indicar algumas de suas manifestações. Introduzidos na vida política em um período de extrema radicalização e antagonismos de classe, que se tornaram potencialmente mais agudos devido às disputas partidárias usuais nas pequenas comunidades rurais, tais atores (normalmente jovens recrutados pelos setores progressistas da Igreja Católica e, em alguns locais do Sul, pela Igreja Luterana) viveram os anos da década de 1980 construindo não apenas suas organizações e a representação social em algumas regiões mas, também, formando-se como lideranças e personalidades públicas influentes, alguns até mesmo tornando-se lideranças nacionais. Sua presença no campo político e seu reconhecimento por outras forças tradicionalmente presentes na estrutura política exigiram alguns anos de disputas, ações e diferentes estratégias, segundo os humores das conjunturas vividas. No geral, no entanto, alcançou-se uma legitimidade política que vem materializando o reconhecimento, muitas vezes explícito, dos outros participantes destas esferas de disputas e conflitos sociais. Em alguns casos, como em relação ao MST, com a chancela oficial de participação (e até mesmo controle) em espaços públicos que administram fundos sociais.

Ainda no campo político, outro resultado é saliente e de enorme importância. Refere-se à gradual capacidade destas novas forças sociais perceberem e, no limite, interferirem, na formação e na alocação dos fundos públicos, o que tem ocorrido, já em alguma extensão considerável, em muitos municípios onde tais forças sociais atuam. Esta é uma exigência democrática que, se concretizada amplamente, acarretará por certo mudanças sem precedentes na história social dessas regiões, com conseqüências diretas não apenas na distribuição de recursos públicos (que seriam mais próximos das demandas sociais), mas — o que é fundamental para o aprimoramento político do país —, passaria a exigir novos comportamentos e “pautas políticas” para aqueles envolvidos em “carreiras políticas”, assim tornando mais distantes as chances de poderem assumir cargos públicos, se conquistados por mecanismos exclusivamente clientelísticos. Em algumas localidades, como dado promissor, programas de governo e de administração aos poucos passaram a ter preeminência em relação às eventuais marcas pessoais dos candidatos envolvidos nas disputas eleitorais, resultando em possibilidades mais seguras de escolhas de novos executivos municipais.

Entretanto, esta capacidade de desenvolver um eficiente controle social sobre a formulação de políticas públicas para os agricultores familiares ainda distancia-se de um padrão mais democrático. Promissora foi, certamente, a disseminação da categoria “agricultura familiar” e sua explicitação entre os movimentos sociais e suas organizações, nestes anos recentes. Esta é, inegavelmente, uma mudança de amplas conseqüências políticas, ainda pouco percebida, porque a substituição de noções antes existentes, como “pequena produção” (e, ainda mais inadequado, “camponeses”), representa um divisor político de enorme significação nas possibilidades dos segmentos sociais subalternos do mundo rural. Permite, antes de mais nada, separá-los claramente das outras classes rurais ligadas à grande propriedade territorial, pois antes grassava enorme confusão política englobada na noção, essencialmente ideológica, de “produtores rurais” — o que permitiu, em muitos anos, as lamentáveis alianças entre organizações rurais de agricultores familiares e aquelas do setor patronal, em torno dos “problemas da agricultura”. A categoria “agricultura familiar”, pelo contrário, é essencialmente política e delimitadora de limites sociais, em termos de classe, o que poderá abrir campos de compreensão e definição de iniciativas mais “afinadas” com os interesses de grupos sociais inscritos neste conceito. Aliás, já existem evidências neste sentido, como a formulação oficial, de “políticas diferenciadas” para a agricultura familiar (antes impossíveis de serem elaboradas, no âmbito das antigas noções existentes) e, também, o esboço de políticas públicas específicas para esta classe social, como o ”Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar“ (Pronaf), atualmente uma das mais importantes políticas públicas para o meio rural brasileiro.

Há ainda outros resultados que podem ser diretamente relacionados à presença destes atores sociais em tantas regiões agrárias do Brasil. É improvável, por exemplo, que o “tema ambiental” viesse para a agenda política e acabasse indicado na maioria dos estatutos jurídicos hoje existentes, dos federais às “constituições municipais”, se não fosse por exigências sociais dos movimentos sociais e suas organizações (obviamente, neste caso, incluindo o grande número de grupos sociais ambientalistas de extração urbana). Neste tema específico, contando também com a dinâmica presença de um grande número de ONGs que atuam em áreas rurais, em todo o Brasil, propugnando um desenvolvimento rural sustentável, ambientalmente equilibrado e contestadoras do padrão tecnológico implantado durante a década de 1970, que trouxe impactos ambientais dramáticos nas regiões onde a modernização agrícola mais intensificou-se. O papel destas entidades, em associação com os movimentos sociais (inclusive o MST, embora de forma bastante secundarizada), é ainda pouco avaliado e conhecido, mas são inegáveis os efeitos da presença destes atores sociais para introduzir o tema ambiental e a sua consecução em dispositivos de proteção legal e sua inscrição, de forma crescente, entre as demandas sociais.

Também um outro resultado pode ser ainda ressaltado. Através da disseminação de um discurso fortemente igualitário entre os participantes dos movimentos sociais, nos primeiros anos e, posteriormente, pela emergência de movimentos de mulheres rurais (autônomos ou subordinados à estrutura sindical), têm sido notada uma redução dos padrões usuais de discriminação por gênero, pelo menos (o que é mais visível) no plano discursivo. Provavelmente, embora ainda em âmbitos sociais muito reduzidos, até mesmo ocorra a redução real de outras formas de dominação devida a gênero existentes no meio rural, particularmente em relação aos níveis de violência física exercida sobre mulheres rurais nas unidades domésticas. Também neste caso, não existem levantamentos de informações precisos e nem resultados de pesquisa que sejam satisfatórios, mas apenas sinais esparsos e assistemáticos, embora sintomáticos de tais mudanças mas, em relação ao MST, como será salientado posteriormente, esta mudança pouco tem modificado as relações devido a gênero no âmbito, em especial, dos assentamentos rurais.  

2.3 O MST: fases de sua história

Um análise da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mesmo que restrita exclusivamente a regiões específicas do Brasil, representaria difícil desafio de pesquisa, em vista da vigorosa história social que este Movimento desenvolveu, a partir dos primeiros anos da década passada. Organizado nacionalmente desde meados dos anos 80, o MST tem tido uma capacidade surpreendente de reinventar-se politicamente segundo as variações conjunturais e uma criatividade sem paralelo com os outros movimentos. Tem conseguido, assim, manter-se à tona e evitado situações de fortes indefinições, como tem sido a situação experimentada pelo movimento sindical  ou outros movimentos sociais rurais. Seus desafios são, proporcionalmente, também maiores, por ter como base social os “mais pobres entre os pobres do campo”, normalmente grupos sociais de ocupação episódica, sem moradia definida, sem acesso à escolaridade e, quase sempre, facilmente vítimas de manipulações políticas de toda ordem — na linguagem do próprio Movimento, sua base forma o “lumpesinato”, os setores sociais mais frágeis do meio rural. Mas, seu desafio principal é exatamente aquele derivado da razão mesma de sua existência, isto é, tentar pressionar socialmente para alterar um padrão de propriedade da terra historicamente consolidado, onde o controle deste recurso mantém-se nas mãos de uma minoria de proprietários.

Entre os movimentos sociais que surgiram naqueles anos de transição política, o MST apresenta a mais forte identidade social e tem sido capaz de bem definir a sua base social e motivá-la. Como resultado, é o movimento com maior capacidade de mobilização, o impacto de suas ações sendo, no geral, de grande visibilidade pública.[9] Tendo se tornado um ator social reconhecido e participativo das lutas sociais, os resultados de suas ações têm sido razoavelmente significativos, pois já conseguiu forçar o nascimento de milhares de  novos assentamentos em todo o Brasil — número talvez não tão relevante, em termos numéricos, se comparado à população demandante de terra. Segundo os números oficiais, até o final de 1996, tinham sido assentadas, em todo o país, 117 mil famílias, mas apenas entre janeiro de 1997 e junho do ano seguinte, outras 114 mil famílias receberam suas parcelas de terra e os programas de reforma agrária federais estimam que será possível oferecer acesso à terra, entre 1999 e 2002 para outras 400 mil famílias. Tais resultados, pelo menos em algumas sub-regiões, têm contribuído de forma significativa para a melhor distribuição fundiária em várias regiões rurais do país, criando oportunidades de ocupação e de acesso à terra para milhares de famílias, além de instaurar dinâmicas econômicas novas, como se ilustrará adiante.

Provavelmente, sob uma perspectiva geral, pode-se segmentar a história do Movimento em três momentos principais — correndo-se o risco, é claro, de uma extrema simplificação, especialmente a partir de 1994/95, quando o Movimento expandiu-se nacionalmente e as variações regionais acentuaram-se significativamente. O primeiro momento refere-se aos anos formativos, do início da década de 1980, quando os primeiros grupos de sem-terra foram organizados, principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, passando por sua estruturação formal (em 1984, com o congresso de constituição, na cidade de Cascavel, no Paraná) e até o emblemático ano de 1986, que conclui esta primeira fase, quando o movimento era ainda essencialmente sulista. Neste primeiro período, o MST contou com a forte presença de mediadores religiosos ligados aos grupos progressistas da Igreja Católica, inclusive como dirigentes do próprio Movimento e, no geral, selecionou ações de pressão menos confrontacionais, optando por dialogar e tendo como interlocutor principal os governos estaduais — até 1985. Neste último ano, nacionalmente, a partir do primeiro governo civil que tomou posse, encerrando o ciclo militar, defrontou-se também com o Governo Federal. Salientava-se nesta primeira fase, em virtude da presença da Igreja Católica, a adesão aos princípios de realização de ações marcadas pela não-violência e, pelo lado do Governo Federal, destacava-se a presença clara da reforma agrária na agenda do Estado, em virtude da militarização de tais disputas sociais. Eram, contudo, momentos de fácil recrutamento de agricultores com pouca terra ou sem terra e o Movimento expandia-se agilmente, fundado no significativo apoio dos mediadores religiosos da Comissão Pastoral da Terra e nas facilidades operacionais oferecidas pelas estruturas da Igreja Católica. Não muitos novos assentamentos foram formados, mas os poucos concretizados serviram como forte estimulante à ampliação da capacidade de mobilização do Movimento.

Uma segunda etapa ocorre entre os anos de 1986 e 1993. Neste período, as ações do Movimento gradualmente tornaram-se principalmente confrontacionais (simbolizado, inclusive na mudança da consigna principal, que se era antes “Terra para quem nela trabalha”, passou, nesta segunda fase, para “Ocupar, produzir, resistir”), com vários episódios de enfrentamento com policiais ou jagunços dos grandes proprietários, em virtude de uma nova orientação interna, que privilegiava esta tática de luta — particularmente, a partir da recusa dos agricultores sem-terra em submeter-se à direção incontrastável assumida até então por mediadores da Igreja Católica. A partir desta fase, portanto, inverte-se a relação entre os mediadores religiosos, os quais, se antes definiam a orientação geral do Movimento, passaram gradualmente a compor-se como quadros auxiliares da organização, o que apenas acentuou-se nos anos seguintes. No Sul do país, um episódio que bem ilustra esta fase foi, entre inúmeros outros fatos, o “conflito da Praça da Matriz”, ocorrido no centro da cidade de Porto Alegre, em agosto de 1991, quando os agricultores enfrentaram a polícia militar estadual, em incidente cuja violência surpreendeu fortemente a opinião pública daquele Estado.[10] Em resumo, a adesão rápida a um ideário leninista, ainda que simplificado, por parte do pequeno grupo de dirigentes principais, que sacrificou até mesmo a orientação do jornal da organização, que passou a ser mero instrumento de “agitação e propaganda”. Como resultado, neste período decidiu-se também organizar este movimento social como um “movimento de quadros” (e não “de massa”, como se pensava no primeiro momento, estimulado pela presença da Igreja), aos poucos não sendo mais identificado como um “movimento social”, no sentido sociológico da expressão, mas moldando-se propriamente como uma centralizada organização.[11] O MST deixou então o Sul como região privilegiada de ação e transferiu sua sede para São Paulo (onde ainda permanece), salientando-se que, naqueles anos, o Governo Federal passaria a ser um interlocutor privilegiado, até pelo menos o ano de 1988, quando foram abandonadas as esperanças de ocorrência de amplos processos de desapropriação de terras, pois o Governo Federal aos poucos liquidou suas intenções neste campo, como era a promessa inicial do governo civil da “Aliança Democrática”, que assumira em 1985. Mesmo retornando, no final desta fase, a confrontar-se com os governos estaduais, este seria o período de maiores resultados práticos (sendo apenas suplantando pelos resultados do período iniciado em 1996), com o número de assentamentos ampliando-se e um número significativo de agricultores sendo recrutados para as ações propostas. No final desta segunda fase, o MST experimentou também uma relativa “crise”, em vista da presença ostensiva de forças contrárias, como a efêmera UDR (União Democrática Ruralista), uma organização de grandes proprietários que optava por métodos confrontacionais e violentos, em suas ações no meio rural, como antes citado. Mas surgiu também outro problema crescente, em alguma medida ainda não resolvido, relacionado ao crescimento rápido do número de assentamentos, que passaram a impor uma pergunta premente: como organizar a produção nestas novas áreas, viabilizando economicamente os assentados e apresentando-as como “áreas modelo”? A resposta a esta pergunta, desenvolvida pelo Movimento em diversos assentamentos, em vários Estados, representou um dos mais fascinantes exercícios de ideologização produzidos nos anos recentes, quando o MST propôs (e impôs, onde foi possível) a constituição de cooperativas inteiramente coletivizadas — uma evidência notável do grau de mistificação ideológica então alcançado.[12]

O terceiro momento engloba os anos mais recentes, desde o início de 1994, quando o MST viu–se envolvido em um conjunto novo de fatos políticos a serem considerados, como a crescente desconfiança dos outros movimentos em relação aos sem-terra e sua organização, em virtude de compreensões distintas da vida social e das estratégias de transformação política da sociedade. Mas também a nova realidade dos assentamentos, agora em grande número, e exigindo respostas rápidas quanto à organização da produção e dos produtores nestas áreas. O fato marcante, no entanto, é que o MST, a partir daquele ano, “conquistou” São Paulo, conseguindo consolidar-se neste estado e descobrindo um campo privilegiado de atuação, o Pontal do Paranapanema, enorme área agrária ideal para as táticas de luta do Movimento, pois é região devoluta em que os proprietários de terra não têm mais o direito de recorrer aos atos desapropriatórios (já decididos em última instância). Por atuar com tal ênfase no estado mais influente, com forte repercussão nos meios de comunicação, o Movimento passou a ter presença ainda mais marcante nos assuntos relativos à reforma agrária e tornou-se interlocutor obrigatório para este tema e os assentamentos.[13]

A outra razão para a crescente força política e capacidade de pressão do MST deriva de alguns trágicos eventos que nos anos recentes têm marcado algumas ocupações de terra — cuja ocorrência, certamente, não surpreendem inteiramente, em face da postura confrontacional adotada pelo Movimento como sua arma de luta principal e pelo costume usual das forças militares de reprimirem violentamente as ocupações de terra. Dois deles foram especialmente decisivos para impulsionar as pressões sociais em favor da reforma agrária nos últimos anos, os episódios de Corumbiara, em Rondônia (agosto de 1995) e, depois, o massacre de Eldorado dos Carajás, no Sul do estado do Pará, ocorrido em abril do ano seguinte.[14] Em ambos os casos, vários trabalhadores rurais foram assassinados, em virtude da ação brutal das forças policiais, em eventos que, em certa medida, refletiram uma forte inflexão a favor da organização dos sem-terra, especialmente porque o segundo evento produziu uma intensa repercussão, nascida do fato, em especial, de ter sido o confronto filmado e, posteriormente, reproduzido intensamente, em diferentes momentos.

Deve ser também registrado que, no Sul do país, o Movimento parece estar encontrando um refluxo em sua força de recrutamento e capacidade de mobilização. Não é objetivo deste artigo analisar as razões para este fato, mas as evidências indicam que as formas de luta preferencialmente “militarizadas” têm tido maiores chances de sucesso quando o “ambiente” político é fracamente institucionalizado e, também, porque inexistem propriedades passíveis de desapropriação, por se apresentarem reconhecidamente como “improdutivas” (não obstante as imprecisões previstas na lei), pois não é situação facilmente encontrável no Sul do país. A alternativa restante, nesses casos, acaba sendo ocupar imóveis “não tão produtivos” e, uma vez na área, barganhar para obter o assentamento em outro estabelecimento agrícola, mas este último sendo comprado com fundos públicos. Em vista do preço das terras nesses estados, esta alternativa dificilmente perdurará por um prazo maior, até mesmo pela provável discussão pública que poderá gerar, em face de diversas alternativas de utilização destes recursos públicos em finalidades “sociais” competidoras.

Há ainda um fator que quase sempre tem sido ignorado, embora de relativa importância interna, para as decisões da organização e suas características atuais. Neste período mais recente, em função das atividades de formação desempenhadas nas escolas que o MST instalou, onde jovens assentados recebem formação política e alguns cursos profissionalizantes, aos poucos constituiu-se uma “segunda geração de militantes”, desta vez oriundos de todos os estados brasileiros, assim refletindo realidades agrárias muito distintas e, em relação aos estados situados na metade norte do país (as regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste), jovens muito mais abertos a interpretações ainda mais radicalizadas da realidade, refletindo suas próprias experiências de vida. O resultado tem sido a lenta aparição de um novo conjunto de líderes que defendem e realizam ações coletivas mais ousadas e contestadoras da ordem social. A imagem de um MST “provocador” que tem sido gradualmente constituída, especialmente a partir de 1998, provavelmente repercute mais a ação regional dessas novas lideranças e, menos, a percepção política dominante entre os dirigentes (majoritariamente sulistas) da “primeira geração” que, embora ainda comandando a organização, são crescentemente confrontados com a radicalidade dos jovens dirigentes recentemente incorporados à estrutura decisória da organização. Começa a ser surpreendente, neste sentido, o contraste discursivo entre os jovens dirigentes do Movimento, quando comparados entre os diferentes estados do Sul e, por exemplo, do Nordeste do país.

Nos anos mais recentes (entre 1994/95 e nossos dias), as ações do Movimento expandiram-se em algumas regiões agrárias e refluíram em outras (dentre estas, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, berço do MST), não sendo objetivo deste artigo discutir as razões que explicam estas variações. Provavelmente, é mais relevante registrar o que se apresenta atualmente para o Movimento como seus dois maiores desafios. Primeiramente, o problema da democracia, pois aproxima-se o momento em que a organização poderá defrontar-se com dissensões e conflitos crescentes, não apenas internamente mas, também, nas relações com outros movimentos sociais e organizações do chamado “campo popular”, neste último caso em virtude do aprofundamento das diferenças políticas e ideológicas. Por estruturar-se como uma organização essencialmente não-democrática, contudo, são amplos os sinais de conflitos também internos, em que o ethos  militarista e a devoção quase religiosa de alguns de seus militantes intermediários, comandados por um pequeno conjunto de lideranças nacionais principais, talvez não seja mais suficiente para assegurar o controle sobre os acampamentos e, principalmente, sobre os assentamentos.[15] Evidentemente, o que mais se salienta, neste aspecto, é exatamente o instrumentalismo de uma retórica ideologicamente anti-sistêmica, meramente construída para fins internos (no sentido de manutenção da coesão do conjunto de seus militantes principais), e que conseguiu desenvolver uma identidade política monolítica e a segurança de seus objetivos políticos e formas de ação.[16] Trata-se de uma aparente charada, talvez incompreensível para aqueles que se informam sobre o MST apenas perifericamente (ou através das superficiais e impressionistas matérias jornalísticas), o que produz curiosos comportamentos de alguns setores sociais, distintos entre si, mas igualmente equivocados. De um lado, setores conservadores reagem à retórica esquerdista e aos símbolos que, assim julgam, provavelmente o “muro já teria enterrado”, clamando pela imposição dos preceitos legais que evitariam a ação dos sem-terra, quando ocupam propriedades privadas. Mas os setores sociais e agrupamentos partidários socialistas de extração urbana, igualmente desinformados acerca do mundo da política rural, e/ou motivados apenas pelos manuais da literatura “clássica”, pretendem perceber nas ações de ocupações de terra, e no crescimento do Movimento, potencialidades políticas transformadoras que, de fato, inexistem no campo de expectativas dos trabalhadores sem-terra — são mudanças relevantes, isto sim, no sentido da democratização da “sociedade rural” sem conter, contudo, motivações políticas destinadas a promover “rupturas políticas” (conforme o ilustrativo exemplo citado na nota de número 21).

O objetivo da formação política de jovens agricultores sem-terra nas escolas do Movimento situa-se, como antes referido, em campo inteiramente distinto — em resumo, pretende-se tão somente produzir a adesão a uma compreensão “total” e fechada da política que, de fato, sequer procura situar-se concretamente em relação ao desenvolvimento político brasileiro recente, pois volta-se inteiramente “para dentro”, já que é destinada precipuamente a manter a disciplina, a motivação e a unidade política entre seus militantes intermediários. Algumas vezes, a mistificação ideológica pode atingir o patético, na tentativa de reforçar a perspectiva polarizada do mundo e o maniqueísmo das interpretações políticas. O jornal do Movimento, por exemplo, é talvez o melhor espelho das mudanças operadas. Até 1986 uma publicação plural, naquele ano sofreu a intervenção da direção nacional e foi transformado em “instrumento de agitação de massas”, no melhor estilo do receituário leninista. Seus jornalistas, por desconfiança, foram afastados e substituídos por “repórteres populares”, tal reorientação passando a refletir-se nas páginas da publicação. Como ilustração da nova opção ideológica, cite-se, por exemplo, entre dezenas de possibilidades de distorção deliberada dos fatos, a maneira como o jornal, em sua seção de “fatos diversos”,  tratou a prisão do lutador norte-americano Mike Tyson, em 1991, acusado (e posteriormente condenado, inclusive com sua confissão) de estupro. Na perspectiva “política” do jornal, tal fato simplesmente não ocorreu e a prisão de Tyson ocorreu, isto sim, em face da histórica discriminação racial existente naquele país, razão que teria sido a única para ser preso e condenado, segundo o que o periódico, na ocasião, publicou, provavelmente para surpresa de seus raros leitores mais informados. Neste caso, como na maior parte da agenda política organizada pela direção do Movimento, fruto de um discurso principalmente inspirado pelos setores ligados à Comissão Pastoral da Terra, que lhe serve como suporte de legitimação religioso, o recurso é à polarização extremada entre o “bem” e o “mal”. Curiosamente, mesmo em meio à crescente complexidade social e cultural do país, bem como à ampliação do arco político e ideológico, vencido o ciclo militar do passado, os instrumentos mobilizadores do MST jamais conseguiram ultrapassar os estreitos limites de uma perspectiva marcada por pólos antípodas que opõe o virtuoso e o maléfico, distantes por certo de qualquer correspondência real. Preso a esta armadura de visível simplificação ideológica, que tem fins meramente instrumentais, não surpreende que a organização jamais tenha conseguido se relacionar sequer com as demais organizações populares do campo brasileiro.  

Tal formação política, é claro, impede inteiramente a compreensão de seus militantes acerca da realidade social e dos problemas da política at large e, por ser superficial e incongruente, tem produzido surpreendentes e corriqueiros casos de rompimento e conflitos — particularmente, quando a identidade social originária, nascida no mundo da “pequena produção”, e rompida pelos tempos do acampamento e das ocupações de terra, concretiza-se novamente com a chegada ao assentamento e a reconstituição da vida comunitária do passado. Em tais situações, são comuns os anseios, entre tantos assentados, de refluir em relação à  sua organização. Entretanto, como grupos dissidentes não comandam os meios de sua sustentação, como aqueles que o MST criou ao longo do tempo, as famílias rurais descontentes, nos assentamentos, são rapidamente afastadas do convívio dos demais assentados e, muitas vezes, são inclusive retiradas do próprio assentamento. Por tal razão, não podendo apoiar-se no “ciclo virtuoso” que mantém o Movimento, citado neste artigo, tais dissidências raramente constituíram-se em grupos organizados, em certas regiões, com poder de visibilidade pública. Quando isto ocorreu, representaram meros apêndices de partidos políticos de esquerda ou, então, sobreviveram por curto tempo, sem chances maiores de sobrevivência. Em Pernambuco, por exemplo, nos anos de 1996 e 1997, existiam pelo menos seis “movimentos de sem-terra” presentes naquele estado, nenhum deles, contudo, representando qualquer ameaça ao MST ou podendo sobreviver por tempo maior.

O outro desafio que tem surgido com força crescente para o Movimento é exatamente a gestão dos novos assentamentos  que se multiplicam pelo país. Não se pretende aqui analisar este tema em suas especificidades, o que se distancia do objetivo do presente artigo, apenas registrando-se que as propostas produtivas até agora indicadas não têm concretizado situações inovadoras em relação às possibilidades usualmente enfrentadas por agricultores familiares pauperizados. Neste sentido, os assentamentos, como regra geral, não deverão se constituir em mais do que uma sobrevida temporária às famílias que perderam a terra e voltam a ter acesso a uma parcela de um assentamento. Optar, como tem sido o caso mais corriqueiro nos assentamentos, por formatos tecnológicos típicos ou  da “agricultura de sobrevivência” ou, como em muitos assentamentos do Sul do país, da “agricultura moderna”, esta última demandante de insumos agroindustriais e de estruturas produtivas que elevam os níveis de endividamento dos assentados, não oferece viabilidade econômica e produtiva aos novos parceleiros, particularmente à luz dos condicionantes macroeconômicos antes apontados.

Provavelmente esteja sendo iniciada uma quarta fase na história do Movimento, quem sabe definida a sua abertura a partir de 1998, quando as dificuldades para a ação da organização ampliaram-se notavelmente. Embora a retórica justificadora para as incertezas  desses anos venha apontando, em particular, as “ações criminalizantes” da ação governamental, argumento que parece distante da realidade, o fato é que o crescente isolamento do MST, em relação às demais organizações populares do campo, e até mesmo em relação a algumas entidades antes aliadas, tipicamente urbanas, reflete, isto sim, o conjunto de recentes escolhas políticas da organização. Nos últimos três anos, o Movimento tem optado por um processo de radicalização política cuja rationale  parece distante de qualquer esquema interpretativo. Preferindo invadir, por exemplo, prédios públicos, ocupar algumas propriedades notoriamente produtivas (que não podem ser desapropriadas, segundo a lei), invadir navios para denunciar a existência de carga de “grãos transgênicos”, realizar atos de pressão política sobre temas recentíssimos e ainda muito controvertidos, na esfera dos debates públicos (como os tratados de livre comércio ora propostos, ou o tema dos organismos geneticamente modificados), além da repetição exaustiva de um discurso anti-Estado, são iniciativas que têm contribuído para afastar o Movimento de suas áreas anteriores de adesão política e estreitar seu campo de ação política. Talvez o sinal mais significativo desta nova fase, se concretizada, seja exatamente a reticência da cúpula da Igreja Católica em aliar-se, quase incondicionalmente (como no passado), com a organização dos sem-terra, crescentemente desconfiada de suas formas de ação e opções políticas, embora a agência de mediação da instituição, a Comissão Pastoral da Terra, há anos venha atuando como mero “departamento religioso” do Movimento.[17] O tempo, contudo, é que indicará se tais rupturas irão concretizar-se mais amplamente ou se, caso contrário, o MST poderá reorganizar-se politicamente e melhor interpretar suas alternativas e possibilidades, à luz das mudanças políticas no Brasil, no período recente.

3. O MST e os dilemas da luta social no campo

A experiência social e política do Movimento, particularmente nos anos mais recentes (de meados da década de 1990 aos nossos dias), tem sido emblemática, por um lado, de suas virtualidades e extraordinária capacidade de manter-se proativo, como ator social fortemente presente na vida política brasileira mas, também, como contraponto, é igualmente uma história organizacional exemplar, quando revela os impasses com que tais grupos sociais defrontam-se no período contemporâneo.

Neste artigo, à luz dos resultados mais expressivos e meritórios alcançados pelo MST, um considerável espaço seria necessário para listar seu imenso conjunto de realizações, ao longo dos anos e nas diversas regiões rurais brasileiras. São variados os casos, por exemplo, de regiões antes relativamente “adormecidas”, do ponto de vista econômico, mantendo raríssimas atividades produtivas e que se tornaram extremamente dinâmicas, impulsionadas pela presença crescente de assentamentos rurais que foram formados na área e, igualmente, com a chegada da organização dos sem-terra e seus líderes, ou seja, por um novo conjunto de “agricultores-tornados-dirigentes-municipais”, que passaram a pressionar mais intensamente os poderes políticos locais, a interferir mais incisivamente na implantação das políticas governamentais e, em especial, passaram a exercer maior vigilância sobre as práticas políticas. Essas pequenas regiões sub-nacionais assim revitalizadas são inúmeras, espalhadas em quase todo o Brasil, e respondendo pelo nascimento de um conjunto de famílias rurais mais participativas, atuantes nos seus âmbitos municipais e, em conseqüência, contribuindo para a democratização local, antes submetida a formas de controle social e político típicas da história agrária brasileira, ou seja, marcadas pela presença de formas de mando e de clientelismo político. Como resultado, a multiplicação dos assentamentos em praticamente todos os estados brasileiros tem produzido, especialmente, a renovação política desses rincões rurais, democratizando-os lentamente e produzindo novas práticas sociais, antes comandadas exclusivamente pelos grandes proprietários de terras. Os próprios assentamentos e sua concretização também derivam, em grande parte, da ação de pressão do Movimento e, menos, das prévias decisões governamentais. Embora a reforma agrária e a “necessidade de mudar a estrutura de propriedade da terra” estejam inscritos na agenda política brasileira há longo tempo e alguns governos, na história do país, adotaram posturas favoráveis à implantação de programas de reforma agraria,[18] o fato é que a multiplicação de assentamentos, em números crescentes e sem precedentes, nos últimos cinco anos, relaciona-se diretamente às pressões sociais realizadas pelo MST (e, em alguns estados, pelo “movimento sindical” de trabalhadores rurais), sem deixar de também reconhecer a conjuntura favorável à implantação desta política, em face da fragilização dos grandes proprietários de terras, conforme o quadro macroeconômico descrito na primeira seção deste artigo. As ocupações de terra, com efeito, tem sido decisivas para impulsionar o programa de reforma agrária. Girando em torno de 100 ocupações, em todo o país, nos primeiros anos da década de 1990, cresceram exponencialmente a partir de 1996, quando atingiram 398 ocupações , chegando a quase 600 dois anos depois, com pequena queda nos anos mais recentes. Sintomaticamente, é o período em que a administração federal mais avançou seu programa de formação de novos assentamentos. 

Neste sentido, a explicitação dos resultados da eficácia política e organizativa empreendida pelo Movimento, talvez pudesse ser circunscrita, principalmente, a três focos principais. Primeiramente, a permanência do tema “reforma agrária” no cenário de debates políticos da sociedade brasileira no período, demanda que provavelmente seria enfraquecida ou até mesmo eliminada, sem a existência da organização dos sem-terra, para insistir na necessidade de sua implantação. Em segundo lugar, a formação de um número expressivo de assentamentos, o que garantiu o acesso à terra a um número igualmente significativo de famílias rurais pobres (antes indicado), as quais, sem tal alternativa, ficariam à mercê da opção migratória para as cidades, em uma época de baixo dinamismo da economia e redução das oportunidades de trabalho nas cidades, como antes apontado.

Finalmente, o terceiro aspecto, entre outros, que deveria ser ressaltado como representando mérito destacado da organização, em muitas regiões, já antes citado, refere-se exatamente à democratização da vida política dos pequenos municípios, em face da constituição de novas formas de representação e de organização estimulada pelo Movimento, tão logo os assentamentos são formados, nas diferentes sub-regiões agrárias brasileiras. Associado a tal fato, há um ângulo de extraordinário efeito, em algumas regiões brasileiras, fruto das ousadas ações do MST, e que refere-se a uma inversão das relações entre grandes proprietários de terra e os “pobres do campo”, recrutados como assalariados rurais ou pequenos produtores subordinados aos interesses dos primeiros. Historicamente, como é notório, essas relações vinham sendo rigidamente unilaterais, indicando a categórica dominação política dos fazendeiros nas diversas regiões agrárias, evidenciada sob diferentes formas de subordinação econômica experimentadas pelas classes subalternas do campo brasileiro. Em diversas regiões, contudo, em vista da multiplicação da arma de pressão do Movimento (as ocupações de terra), o conteúdo de tais relações tem sido alterado, criando sentimentos de crescente temor por parte dos grandes proprietários de terra, que assistem, quase que generalizadamente, a incapacidade de o Estado brasileiro contrapor-se, como no passado, a esta forma de pressão organizada pelos sem-terra. Em algumas regiões, como no Sul do Brasil, tal temor às vezes expressa-se visivelmente, se analisadas as contra-reações dos proprietários, quando ocupações de terra ampliam-se em número e em regiões específicas. Esta inversão, em relação ao passado de dominação política dos maiores proprietários é, talvez, um dos resultados mais notáveis das história do Movimento, ampliando assim as chances de crescimento dos estoques de terra para programas de reforma agrária, muitas vezes facilitado pela desesperança gerada, desta vez, entre os grandes proprietários, gradualmente impotentes para contrapor-se às ocupações de terra.[19] 

Ressaltada, genericamente, a agenda bem sucedida da ação do MST, caberia, assim, indicar o que a literatura raramente aponta, qual seja, uma série de dificuldades políticas, formas de ação e opções políticas selecionadas pelo Movimento e os problemas daí decorrentes, que submetem sua história recente a uma luz crescentemente crítica. Dentre estes impasses, citam-se alguns, abaixo, sucintamente discutidos:
(a) a formação de um “círculo virtuoso” que sustenta a ação política do MST e permite a realização de um sem-número de ações externas que a todos surpreende, porém sustentado em formas de controle social nos “seus” assentamentos, onde as famílias rurais são submetidas ao mandonismo dos dirigentes intermediários da organização, assim repetindo o conservador padrão de hierarquização que sempre foi a marca distintiva das relações sociais rurais no Brasil (multiplicando-se, insista-se, os trabalhos de pesquisa demonstrativos de tais práticas nessas áreas). Tal controle social, ressalte-se, é concretizado por serem tais dirigentes os mediadores das políticas públicas destinadas aos assentamentos e, como resultado, o acesso aos fundos públicos tem sido o mecanismo principal de controle social dos assentados. Mantido tal padrão interno nessas áreas, controla-se igualmente o público que será recrutado, não apenas para formar novos militantes da organização, os jovens filhos dos assentados, submetidos a compreensões doutrinárias do mundo (20)[20], como, igualmente, aqueles que serão convocados para engrossar as ações públicas do MST, quando ocupando outras propriedades rurais, realizando marchas, invadindo prédios públicos e outras ações que formam o imenso repertório de lutas desenvolvido no período. A agilidade do MST, nestes anos, portanto, assenta-se nesses dois pilares centrais que são os recursos humanos recrutados nos assentamentos, de um lado (tanto para formar quadros como para oferecer a marca da presença quantitativa em suas ações externas), como, por outro lado, o controle que o Movimento exerce, como mediador, sobre a aplicação de fundos públicos dirigidos aos assentamentos, permitindo assim a seleção de quadros de maior lealdade aos seus objetivos estratégicos e, como contrapartida, exercendo pressões virtualmente irresistíveis sobre os eventuais agricultores mais resistentes à dominação, comportamento típico nos assentamentos onde o MST é hegemônico. O acesso a tais fundos públicos conta não apenas com o leque de novas políticas constituídas no período, em âmbitos diversos, mas, igualmente, com o apoio de amplos setores sociais urbanos mais radicalizados, muitos funcionários governamentais que têm facilitado a concretização de projetos e o correspondente acesso a esses fundos. Embora por certo legítimo, em si mesmo, que o MST reivindique (e consiga) acesso às políticas públicas instituídas nos anos recentes, não deixa de ser curioso, contudo, que os atores sociais urbanos com os quais a organização relaciona-se desconhecem, quase inteiramente, o seu interlocutor que representa os sem-terra, exceto no plano mais visível representado pelas ações externas realizadas periodicamente, que têm tido o poder de despertar lealdades, muitas vezes incondicionais, entre segmentos urbanos. Aqui repete-se, por analogia, a inesperada dissonância entre o “MST real” e o “MST virtual”, que Hellman discute em relação ao caso do movimento zapatista no México. Surpreendida pelo imenso apelo internacional e solidariedade despertados, em relação aos zapatistas, a autora justifica tal apelo, inicialmente, por ser um “caso extremo”, que aparece como uma direta confrontação entre os mais pobres e os mais poderosos, o que obscurece os problemas analíticos que existiriam por detrás da visibilidade mais aparente e pública dos zapatistas. Assim como em relação ao caso mexicano, para a história dos sem-terra no Brasil seria possível repetir a autora, quando enfatiza que “virtual Chiapas holds a seductive attraction for disenchanted and discouraged people on the left that is fundamentally different than the appeal of the struggles underway in the real Chiapas” (Hellman, 2000: 1);[21]  
(b) como corolário, a prática política do Movimento, ao longo dos anos, obedecendo à ortodoxa preferência leninista de sua direção principal, tem sido essencialmente não-democrática, como antes enfatizado. Nenhum de seus dirigentes, por exemplo, submete-se a qualquer responsabilização interna (ou externa, diga-se de passagem) por parte dos membros da organização, por não existirem tais canais de prestação de contas e de responsabilização.[22] Os dirigentes não são eleitos, em nenhum momento público, mas escolhidos cuidadosamente pelos quadros mais altos, sob o critério principal da lealdade e submissão às diretrizes principais, que são obedecidas rigidamente, sob pena de perda da posição na estrutura da organização.[23] Os exemplos que ilustram esta curiosa oposição entre o discurso público dos dirigentes do MST, que reivindicam a democratização da sociedade e de suas estruturas políticas, e a sua autoritária hierarquia interna, que não admite a menor dissensão, são inúmeros. Bastaria, neste ponto, talvez citar dois casos, em campos distintos. Primeiramente, em suas decisões de combater o processo de privatizações em curso nos anos noventa, em 1999 um grupo de militantes invadiu um posto de pedágio em uma rodovia privatizada, no estado de São Paulo, e depredou as instalações deste posto. Como pesquisas de opinião demonstram que a maioria dos usuários que utilizam tal rodovia não tem sido contrários à sua privatização (quando muito avaliam negativamente os preços cobrados, reivindicando tarifas menores, mas não a reversão do processo), como responsabilizar os dirigentes do Movimento por um ato político que não encontra, neste caso pelo menos, legitimação alguma, por não encontrar apoio político e social à ação realizada? Espantosamente, repetindo outras situações similares, o Movimento e seus aliados políticos vêm tentando transformar a prisão de alguns dos responsáveis em uma ação exclusivamente política, realizando intensa atividade de propaganda que transforma os responsáveis pelo ato, atualmente sujeitos a inquérito criminal, em “prisioneiros políticos”. Outro caso, em campo distinto, refere-se à  recente decisão de autoridades federais responsáveis pela área ambiental de penalizar o MST pelo desmatamento indiscriminado ocorrido em algumas áreas de assentamentos no Norte do Brasil, instituindo uma pesada multa financeira (que, diga-se de passagem, apenas corresponde ao que prevêem as leis ambientais brasileiras, tidas como das mais “progressistas”, mundialmente). Ou então, a recente revelação de ter ocorrido no Paraná o maior desmatamento de área contínua da mata atlântica, nos últimos 15 anos, coincidindo exatamente com a formação de um grande assentamento rural na mesma área (cf. O Estado de São Paulo, 27 de abril de 2001). Como irão, contudo, concretizar o ato de responsabilização do Movimento, se seus dirigentes formais sequer são reconhecidos, pois a prática da organização é manter estruturas não legalizadas, escolhendo outros dirigentes menores e desconhecidos publicamente para assumir formalmente a fachada jurídica, sob outros nomes, da organização (que é a forma legal sob a qual é possível ao MST receber fundos públicos, assinar convênios e exercer outros atos jurídicos que podem ser reconhecidos). Essencialmente, este tópico não se refere, como poderia parecer à primeira vista, aos métodos de ação política da organização, que podem ser ilegais, mas legítimos, mas remete-se, isto sim, ao tema central do jogo democrático, qual seja, a possibilidade de ampla formação de formas de representação que, autonomamente, estruturem seus interesses e os disputem abertamente no campo das lutas políticas, sem, contudo, deixar de assumir suas responsabilidades, quando empreendidas ações públicas mais ousadas, confrontacionais e controvertidas. Neste segundo caso, por exemplo, visando uma rápida problematização, como reconhecer os direitos das comunidades indígenas quase sempre presentes em áreas adjacentes aos assentamentos, utilizando seus recursos naturais como forma de sobrevivência, como é comum no Norte do país? Acentue-se também que a prática não-democrática do Movimento, interditando qualquer debate e compromisso com outros grupos sociais do meio rural, embora notória, tem sido minimizada por quase todos os setores situados à esquerda do espectro político, como se este fosse um tema menor e irrelevante.[24]

Um contra-argumento a esta proposição sobre a face do MST, que tem sido autoritária, refratária às práticas democráticas, nos remeteria a outra pergunta, comumente apresentada: poderia ser diferente, dado o  ordenamento jurídico brasileiro, o papel repressor do Estado, a ação intimidatória das organizações patronais e, até mesmo, a depreciação cultural existente sobre o “rural” (e seus habitantes), tão presente no imaginário social brasileiro? Como mobilizar famílias rurais extremamente pobres, sem escolaridade e ocupação regular, muitas vezes sem sequer moradia costumeira? Haveria outra forma organizativa, que não a centralizada, fundada na férrea disciplina, inclusive penalizadora dos “deslizes” que ferem o estatuto disciplinar do Movimento? Uma estruturação interna democrática, por fim, não acabaria enfraquecendo o Movimento e sua capacidade de luta social? Tais dúvidas, à luz da história política brasileira, certamente são mais do que razoáveis e substantivas. Entretanto, o que se argumenta neste texto é, exatamente, a decisão de jamais sequer se tentar uma forma organizacional diferente, seja em função de realidades regionais distintas ou, então (o que é mais relevante), em função de mudanças nos contextos políticos, ao longo da história da organização dos sem-terra. Provavelmente, mesmo as análises menos refinadas concordariam, malgrado diferenças de perspectivas teóricas e políticas, que ocorreram mudanças no sistema político brasileiro, desde os primeiros anos do Movimento e até os dias atuais e, portanto, as formas de luta não poderiam manter-se, indefinidamente, as mesmas. Se ocupações de terra representavam um ato extremo de confrontação com as estruturas do poder das oligarquias agrárias, durante os anos oitenta, o seriam nos anos noventa, na maior parte dos estados? Se uma agenda discursiva anti-sistêmica assumiria claro significado político na longa noite dos generais, entre 1964 e 1984 (exatamente porque materializaria a polaridade “nós” versus  “eles, uma reafirmação da versão da polaridade moral “bem” e “mal”), faria sentido político, contudo, na conjuntura política dos anos noventa, quando os governos foram constituídos após disputas eleitorais legítimas? A desqualificação política e ideológica do Estado, expressando o antagonismo da sociedade à ditadura militar, no primeiro momento, tem qualquer sentido real na virada do milênio? A persistente recusa a qualquer experimento democrático referendado pelo Movimento, seja internamente, seja em suas relações com as demais organizações do campo, em conseqüência, torna impossível, pela inexistência, afirmar suas possibilidades políticas, mas também permite acentuar a incongruência entre um regime político que se democratiza e institucionaliza e a existência de uma organização que insiste em uma retórica anti-sistêmica; 
(c) a face não-democrática da história do Movimento poderia, infelizmente, ser também facilmente comprovada sob outros ângulos. Sem estender em demasia essas considerações, mencione-se, nesta parte, outros três aspectos. Primeiramente, como referido, o controle social sobre as famílias rurais assentadas, cujas evidências empíricas começam lentamente a surgir como resultado da pesquisa social por parte de acadêmicos mais preocupados com o rigor de seu trabalho de investigação e, menos, com suas preferências militantes. Desta forma, são cada vez mais conhecidos os diversos mecanismos utilizados pelos dirigentes da organização que tem a responsabilidade em uma determinada região, sobre os assentamentos alí existentes. Mecanismos que não apenas submetem os assentados à sujeição através do controle dos fundos públicos mas, muitas vezes, recorrem à mais aberta intimidação, inclusive física. A formação de cooperativas inteiramente coletivizadas, que fazem tabula rasa  da história social dos agricultores, antes pequenos proprietários, por exemplo, encontra uma forte resistência das famílias rurais, o que tem gerado inúmeros conflitos nos assentamentos formados (consulte-se, por exemplo, Souza, 1999; Pereira, 2000 e Brenneisen, 2000). Aliás, a incorporação de tais comportamentos passou a ser uma das marcas do cotidiano da organização, inclusive em momentos épicos e de grande visibilidade pública. Quando ocorreu a bem sucedida marcha a Brasília, em 1997, por exemplo, tornaram-se conhecidos os métodos de controle rígidos e autoritários estabelecidos pelos dirigentes, posteriormente retratados por estudiosos daquele evento. Em seu minucioso estudo sobre a marcha, Chaves relata o controle militarizado do evento, as pesadas penalidades existentes e a condução do processo e suas decisões de forma completamente centralizada, sem inclusive divulgação aos participantes. Relatando o caso de expulsão de um sem-terra da marcha, por suposta transgressão das normas, ressalta que

“(...) Há muitas formas de coibir a expressão, e distintos modos de controle social (...) o desacordo tendia a ser compreendido como indisciplina e, segundo a gravidade, podia redundar em expulsão (...) Esse temor tornou-se presente na Marcha Nacional; no entanto, é cotidiano nos acampamentos do MST: muitos sem-terra dispõem-se de tudo para neles garantir por um tempo a subsistência da família e a sobrevivência do sonho da terra (...) O poder silencioso do medo, que faz calar, tornar-se-ia ainda mais opressivo nos últimos dias da Marcha Nacional”  (2000:217-218).

O segundo aspecto a salientar, ainda sob este item, refere-se à “homogeneização forçada” das diferenças e a forte recusa à alteridade, o melhor exemplo sendo, neste caso, a subordinação das demandas especificamente femininas dos grupos de mulheres, forçadas a submeter-se às “lutas maiores”, que supostamente assegurariam, se vitoriosas, o debate de demandas específicas, em momento futuro. Na história social e política do Movimento tem sido melancólica a trajetória de muitas mulheres portadoras de notáveis talentos pessoais para ocupar posições de liderança, mas não o fazem porque sujeitas ao machismo dominante no interior do MST. Ou, o que é ainda mais perverso, quando assumem o discurso dominante no interior da organização, de certa forma “masculinizando” seu discurso, como única forma de manter as posições e poder ascender na estrutura da organização. Resultante deste controle devido a gênero, que associa patriarcalismo e a quimera ideológica das “lutas principais e secundárias”, a trajetória das mulheres no interior do Movimento tem sido objeto de uma contradição óbvia, que é a distância entre o discurso igualitário para efeito externo e as práticas internas, chegando inclusive ao ocultamento do seu trabalho, desqualificando-o. A mais abrangente pesquisa sobre este tema já realizada é categórica, em suas conclusões, quando ressalta que

“(...) verifica-se que a relativa eqüidade entre os sexos, observada no ambiente dos acampamentos, se esgarça e perde significado nos assentamentos, quando a participação feminina se torna surpreendentemente restrita. Os dados sugerem que a baixa participação das mulheres é própria dos assentamentos, não representando um comportamento naturalmente feminimo (...) Se isto ocorre, deve-se às barreiras à participação erguidas a partir das relações sociais e de gênero e do código de valores que as sustenta — compartilhada por homens e mulheres — que emergem e se tornam predominantes com a normalidade do cotidiano dos assentamentos” (Rua e Abramovay, 2000: 286).

O outro aspecto a ressaltar, neste mesmo item, diz respeito à persistente postura política, algo surpreendente, do Movimento, de categoricamente deslegitimizar o Estado, o que parece ser incompreensível, antes de mais nada, por ser o MST, como antes ressaltado, o mais integrado dos movimentos populares brasileiros, daí extraindo, ademais, a sua própria sustentação financeira principal. Esta deslegitimação, já ressaltada por outros autores (Martins, 2000), faz parte da arquitetura discursiva da organização dos sem-terra, operada, provavelmente, por duas razões principais, a primeira sendo a orientação ideológica de seus dirigentes principais e, a outra sendo a antes referida “razão instrumental”, qual seja, manter um discurso unitário que solidifique a coesão interna de seus militantes e, também, atraia o apoio de setores urbanos radicalizados. Tal postura, contudo, mantém-se em diversas situações, especialmente aquelas que não afetem, eventualmente, o acesso aos fundos públicos, cuja interrupção poderia comprometer a sustentação financeira da organização dos sem-terra. Por exemplo, convidado em julho de 2000 a tomar assento no “Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável”, mesmo a organização não tendo existência formal, como antes indicado, o MST recusou a possibilidade de forma categórica, mas nem por isto tem deixado de exigir permanentemente o acesso às políticas públicas federais implementadas pelo ministério correspondente e com a supervisão do Conselho, valendo-se, para tanto, de todas as formas de ação possíveis, inclusive as confrontacionais (e, aliás, mesmo que isto signifique também confrontar-se abertamente com as demais organizações que representam os setores sociais mais pobres, igualmente demandantes de acesso a tais fundos públicos). Da mesma forma, o Movimento não tem sido capaz de sequer reconhecer algumas medidas recentes no campo agrário que são inéditas em nossa história e representam profundo golpe na estrutura de poder representada pelas grandes propriedades rurais. Entre tais medidas, por exemplo, como uma das mais notáveis, a decisão governamental de cancelar o cadastro de todas as propriedades de maior extensão que não fossem capazes de demonstrar a regularidade de seus títulos. Terminado o prazo para esta comprovação, pouco menos de 2 mil latifúndios, em todo o país, não produziram informações convincentes e tiveram seus cadastros anulados (na prática, seu direito a estas propriedades), representando uma área de pouco mais de 60 milhões de hectares, ou seja, quase quatro vezes o tamanho do estado de São Paulo. Neste caso, amplia-se, em curto prazo, o estoque de terras disponíveis para ações em reforma agrária em ritmo quase exponencial, abrindo inúmeras oportunidades para novos assentamentos. Fosse a lógica operativa do Movimento, nos anos mais recentes, a representação efetiva dos sem-terra e a reforma agrária a sua principal demanda (e não outros objetivos, inclusive partidários), uma interlocução com o Governo Federal, mesmo que mantido sob critérios críticos e de distanciamento político, poderia agilizar enormemente a ocupação produtiva desses imóveis. 

Talvez uma evidência da prática continuada de deslegitimação do Estado perseguida pelo Movimento possa ser retirada da citação abaixo, onde o dirigente máximo da organização faz um vitriólico ataque ao poder judiciário, em uma exposição (pública) realizada há alguns anos. Citações como esta poderiam ser aqui repetidas ad nauseam, inclusive no período imediatamente recente, demonstrativas o suficiente da limitadora noção de política esposada pelos dirigentes principais do MST desde meados dos anos oitenta, quando a organização passou a orientar-se por um outro ideário político, que ainda conforma doutrinariamente a organização. Na ocasião, João Pedro Stédile, fundador do Movimento, ainda hoje seu mais destacado dirigente, provavelmente imaginando-se então como o próximo responsável pela área de reforma agrária do Governo Federal, pois seu candidato às eleições presidenciais de 1994 encontrava-se naquele momento em confortável dianteira, frente aos demais candidatos, não hesitou em desqualificar toda e qualquer iniciativa governamental nesta área e, em relação à ação da Justiça, propôs um curioso mecanismo de neutralização, quando necessário, acentuando, segundo suas palavras, que

“(...) o terceiro aspecto na ação do governo é a legislação, é o poder judiciário. Muita gente tem dito em palestras que, ‘ah, o problema do Brasil é que o poder judiciário vai ser um problema  [para a implantação da reforma agrária]. Vocês sabem melhor do eu (...) o poder judiciário no Brasil é um capacho do poder executivo, é uma tropa de puxa-saco, não existe nenhuma independência do poder judiciário com o poder executivo, a começar pelo Supremo Tribunal Federal (...) se os caras são indicados pelo presidente da república, algum deles vai criticar o presidente? (...) Então, um judiciário que começa desde o Supremo com essas características, o juizinho lá  [nos locais distantes] nós compramos ele com um churrasco, né, o preço vem baixando, promotor de justiça então, deus o livre (...)” [25]

(d) finalmente, não podendo ser estendida neste artigo uma longa lista de problemas políticos e organizacionais que o MST atualmente apresenta, contrariamente ao senso comum compartilhado por analistas sociais distantes das realidades agrárias, nem mesmo detalhar outras decisões polêmicas e/ou não-democráticas assumidas pela organização[26], é necessário, por fim, ainda salientar que as estratégias escolhidas pelo Movimento e suas ações de pressão e reivindicação também têm ignorado uma possibilidade histórica, talvez única, criada nos anos noventa e, na qual, os interesses do Movimento e sua agilidade social e política poderiam potencializar os resultados extraordinariamente. Refere-se aqui à (re)emergência do “desenvolvimento rural” como uma demanda crescente das populações rurais, especialmente em regiões onde suas organizações são mais atuantes. Na década passada, por várias razões, algumas apontadas na primeira seção deste artigo, modificaram-se as condições de produção no meio rural brasileiro que, somadas às mudanças políticas operadas pelo processo de descentralização experimentado pelo Brasil no mesmo período e por novas formas de gestão estatal implementadas em governos recentes, resultaram no reaparecimento desta demanda em diversas regiões agrárias. Cada vez mais, o conjunto de organizações (excetuando-se o MST) associa-se em um ideário de ação e proposição que procura reconstituir as possibilidades de formas de desenvolvimento rural dinamizadoras da economia local ou regional, que instituam novas alternativas na produção de renda e no aumento das oportunidades de trabalho, de integração aos mercados e, igualmente, influam nas esferas políticas do município ou da região. Pretendem, desta forma, assegurar a consolidação e, se possível, a melhoria das condições de vida das famílias rurais que representam, algumas dessas iniciativas hoje caracterizando determinadas sub-regiões do mundo rural brasileiro que começam a sair do encurralamento recente e iniciam formas de dinamização social, econômica e política novas. Em todos os casos conhecidos, a decisão do Movimento têm sido ou ignorar tais iniciativas ou, ainda mais problemática, combatê-las, às vezes agressivamente, não concordando em estabelecer alianças políticas, em nenhum caso conhecido, com as organizações que procuram empreender tais mudanças.

Em um período no qual os grandes proprietários de terras enfraqueceram-se substancialmente, como antes indicado, perdendo igualmente sua capacidade de extrair do Estado federal a sustentação financeira que sempre obtiveram no passado, além de terem os agricultores mais pobres (englobados na categoria mais geral de “agricultores familiares”) criado uma brecha inédita no âmbito do mesmo Estado (através primeiramente de políticas públicas específicas, como o antes citado Pronaf e, mais recentemente, até mesmo instituindo um Ministério do Desenvolvimento Agrário que, de fato, é o “ministério dos pobres do campo”), é espantoso que o MST continue alheio a estas transformações recentes. Mantém-se, surpreendentemente, na mesma estratégia acima citada, refratário (e até hostil) às demais organizações de pequenos agricultores e trabalhadores rurais e, da mesma forma, a sonhar com a “tomada do Palácio de Inverno”, quando a economia rural brasileira, neste início de milênio encontra-se inteiramente mercantilizada e as famílias rurais, sequer remotamente, assumiriam projetos políticos que não fossem, quando muito, reformistas, pois jamais adeririam às projeções de transformação política que os dirigentes principais do Movimento defendem (e ensinam em suas escolas de formação política, para os jovens rurais recrutados em seus assentamentos).[27] Provavelmente, este é, atualmente, o maior impasse político experimentado pelas famílias rurais mais pobres, no Brasil: o processo de democratização da sociedade brasileira produziu uma capacidade de reivindicação sem precedentes no meio rural e uma presença pública e presença no âmbito do Estado igualmente inéditas, além de contar, na maior parte dos anos recentes, com uma possibilidade política de ação dos governos federais do período muito mais favorável, também sem comparação com épocas passadas e, sobretudo, sem contar com a oposição (e ação), na mesma força do passado, das organizações dos grandes proprietários. Mas, como perversa ironia, nos mesmos anos, a organização que mais forte constituiu-se, em face de seu desenvolvimento, vem constituindo-se, mais e mais, no maior empecilho à construção de processos novos e promissores de desenvolvimento rural no Brasil, assumindo assim uma inesperada e insuspeitada face conservadora, quando suas lutas sociais são comparadas com as demandas das famílias rurais mais pobres do país.  

4. Conclusões 

“(...) A teoria crítica foi desenvolvida para lutar contra o consenso como forma de questionar a dominação e criar o impulso de lutar contra ela. Como proceder numa situação em que o consenso deixou de ser necessário e, portanto, a sua desmistificação deixou de ser a mola do inconformismo? É possível lutar contra a resignação com as mesmas armas teóricas, analíticas e políticas com que se lutou contra o consenso?”  (Santos, 2000: 35).

Movimentos sociais transformados em organizações formais, como o MST, uma vez operada tal mudança interna, passam a reger-se por outras lógicas constitutivas e diferentes interesses, diversos daqueles originais, tanto em suas relações externas, com os demais grupos políticos, como em suas relações internas. Sobressaindo-se, neste caso, a estreita relação entre a origem social dos sem-terra e as oportunidades criadas pela expansão da organização, inclusive em termos de carreira política e, mais genericamente, pela extraordinária ampliação de formas de mobilidade social ascendente, possibilidade mantida enquanto a organização conseguir manter seu ritmo de crescimento. Neste sentido, análises sobre o MST “fora de seu lugar”, ou seja, ainda enfocadas pelas conjunturas políticas do período militar ou de seus anos imediatamente seguintes, quase sempre informadas por polaridades político-ideológicas que são o apanágio do passado, mas distantes das formas societárias atuais, obedecem  primeiramente às necessidades do jogo de disputas partidárias ou, então, representam óbvios equívocos analíticos. Tais focos analíticos têm sido majoritários, no Brasil, quando interpretando o dinamismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os exemplos sendo demasiadamente corriqueiros para serem aqui citados.
O título deste artigo inspirou-se no conhecido estudo realizado por Maxine Molyneux sobre o papel e o destino da participação das mulheres e os interesses devido a gênero na chamada “revolução sandinista” nicaraguense. Naquele caso, um processo de ruptura sócio-política prometia a emancipação das mulheres do país, que formaram parte significativa e ativa dos exércitos formados pela guerrilha. Entretanto, argumenta a autora, durante o processo revolucionário e, especialmente, após a vitória dos grupos insurgentes, a especificidade dos sujeitos políticos por elas representados submergiram na “luta geral”. Surge aqui um claro e decisivo problema político, não resolvido naquele caso, quando a autora insiste que

“(...) much depends upon what is implied by subjects ‘losing their specificity’ and goals being universalized. For the universalization of the goals of revolutionary subjects does not necessarily entail a loss of their specific identities (...) if the revolution did not demand the dissolution of women’s identities, it did require the subordination of their  specific interests to the broader goals of (...) establishing a new social order. This raises an important question which lies at the heart of debates about the relationship between socialist revolution and women’s emancipation”  [o que introduz o tema crucial e geral] “(...) which is that of political guarantees. For if gender interests are to be realized only within the context of wider considerations, it is essential that the political institutions charged with representing these interests have the means to prevent their being submerged altogether, and actions on them being indefinitely postponed”  (Molyneux, 1985: 228-229, 251,  ênfase da autora).

Embora aparentemente distinto, a história recente do MST no Brasil é notavelmente análoga, em relação à interdição das possibilidades de emancipação dos grupos sociais representados pela organização. Não apenas diferenças específicas, de cunho sócio-cultural, entre grupos de famílias rurais recrutadas têm sido ignoradas, “submergindo” nas formas de mobilização animadas pelo Movimento mas, ainda mais crucial, diferenças em termos de idade, gênero, formas de inserção produtiva, histórias regionais de agricultura, tipos de organização e representação previamente existentes (que são combatidos ferreamente em nome da “unidade na luta”) e, igualmente, as diferenças de enfoques estratégicos e formas de ação políticas, estas invariavelmente desqualificadas e não aceitas, em nome de uma suposta homogeneidade política, aliás jamais claramente explicitada.

O resultado final, em todas as regiões agrárias brasileiras, tem sido a materialização de uma capacidade de mobilização significativa empreendida pelo MST, ancorada nos mecanismos antes apontados e evidenciada em inúmeros fatos e ações, mas também a incapacidade, por outro lado, de produzir sujeitos sociais portadores de real autonomia organizativa, comandantes de seus próprios destinos, assim impossibilitados de inscrever a emancipação social e política entre seus objetivos de vida. A história do Movimento, neste sentido, perde seu caráter de novidade e apenas repete a melancólica trajetória de outros agrupamentos políticos situados no campo da esquerda tradicional, apenas aparentemente promissores, quando iluminados pelo foco de suas ações externas. Sob os símbolos e ícones elaborados para efeitos externos, contudo, subjaz a silenciosa desconfiança de seus participantes subalternizados, o desconhecimento acerca dos objetivos do próprio Movimento, os impasses produtivos existentes em todos os assentamentos rurais, a feroz disputa política pela hegemonia organizativa dos pobres do campo, o desprezo pelas práticas sociais democráticas e, surpreendentemente, como antes apontado, a reiteração do controle social e das formas de mando usuais no meio rural brasileiro, antes exercidos pelos grandes proprietários de terra e seus prepostos, hoje materializados sob outras formas e acobertados pelo discurso progressista.

As possibilidades de contar com apoios externos, em face dos constrangimentos sociais e econômicas oferecidos pela “globalização”, que tem aumentado a desigualdade social em tantos países, inclusive o Brasil, igualmente tem sido pouco aproveitadas pelo Movimento. Sua repercussão internacional, procurando apoios, reflete especialmente a capilaridade de instituições situadas na órbita das instituições religiosas, que periodicamente promovem ações de divulgação, campanhas e diversas formas de protesto, com resultados, no geral, pouco eficazes, em termos de difusão do “problema agrário” no Brasil. A tentativa da organização, por sua vez, de criar algum tipo de cooperação internacional ainda é muito embrionária. Inicialmente, constituiu-se através da “Coordenação Latino-americana de Organizações Camponesas” (Cloc), sem qualquer efeito mais prático e, recentemente, vem sendo tentada através da “Via Campesina” [www.viacampesina.org], uma articulação de organizações camponesas do continente da qual o MST faz parte, em seu corpo dirigente. Além disto, apenas a divulgação em portais da internet de suas campanhas e ações [www.mst.org.br], também sem significativa repercussão internacional. Mesmo alguns prêmios internacionais, como o chamado “Nobel Alternativo”, ou o “Prêmio Rei Balduíno”, atribuído pelo governo belga para organizações dedicadas ao tema dos direitos humanos, tem tido efeitos limitados, na promoção de uma rede de cooperação internacional que pudesse realizar ações diversas e promover formas de pressão mais eficazes. Neste sentido, ao contrário de outros campos emergentes, como as contestações internacionais dirigidas às organizações promotoras do livre comércio ou a crescente ação relacionada ao tema dos OGMs (para não falar nos temas ambientais), parece que uma “contra-globalização”, de natureza emancipatória, que incorporasse os interesses dos sem-terra do Brasil, ainda não encontrou suas condições objetivas de concretização. Uma razão é, talvez, a natureza da luta social comandada pela organização, que provavelmente não tenha mais o apelo do passado e não encarne uma “novidade” (compare-se, por exemplo, com o caso de Chiapas e suas particularidades inovadoras, discutidas por Hellman, 2001). Mas outra razão para esta ineficácia transformadora, no plano internacional, certamente remete-se à natureza política assumida pelo MST. À luz da história da organização, nos últimos vinte anos, como se argumentou neste artigo, talvez não seja inesperado este diagnóstico e avaliação. A emancipação social e política dos pobres do campo, no Brasil, neste contexto, mantém-se como uma simples miragem, que apenas a fabulação de outros tempos, distantes no futuro, quase utópicos, pode oferecer, adiando, como tem ocorrido desde sempre, a constituição de um ambiente societário onde as esperanças e o mundo vivido não estejam separados por abismos insuperáveis.   

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(1) Professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil (E-mail: znavarro@portoweb.com.br). O autor deseja expressar os mais sinceros agradecimentos a um pequeno grupo de leitores da primeira versão de artigo, cujos comentários permitiram corrigir equívocos e realçar os pontos analíticos de maior relevância, embora certamente sem nenhuma responsabilidade pelos erros remanescentes. Pela leitura crítica daquela versão (o que muito me honrou), sou profundamente grato a Boaventura de Sousa Santos, Gilson Bittencourt, Jonathan Fox, José de Souza Martins, Odaci Luiz Coradini, Raul Jungmann e Tarso Genro. 
(2) Conforme Camargo (2000: 43), por exemplo, "(...) o crescimento exponencial do eleitorado e a modernização da legislação eleitoral no Brasil do século XX é um fato histórico de extrema relevância, visto que ambos evoluíram de maneira contínua a despeito dos  stop and go da ordem política (...) o fenômeno democrático inclui hoje cidadãos que, pela primeira vez, de Norte a Sul, já estão integrados à era eletrônica (...) com votações registradas em tempo real, dificultando as recontagens de votos e as manipulações que facilitam a burla eleitoral. As legislações eleitoral e partidária são, além disso, as mais abertas e permissivas do mundo, possibilitando uma rotatividade das elites políticas sem paralelo em outras grandes democracias conhecidas (...)". Mobilizando um eleitorado superior a 108 milhões de pessoas, em 2000, os processos eleitorais vêm surpreendendo a cada ciclo, a última novidade sendo a inédita eleição local de 75 candidatos indígenas em diversos municípios de sete estados brasileiros. 
(3) Por exemplo, entre aqueles que ressaltaram as impossibilidades políticas dos "povos sem história", incluindo o campesinato, a referência clássica é Hobsbawm (1959), mas esta literatura recebeu raros autores, no campo intelectual da esquerda, que apresentassem uma leitura alternativa, o exemplo pioneiro, neste caso, sendo o estudo de Huizer (1976). Apenas nos anos noventa, quando desabou a literatura inspirada no marxismo vulgar, é que surgiram autores mais receptivos à idéia da participação política ativa das classes subalternas do campo. No Brasil, contudo, José de Souza Martins (1981), em clássico artigo, já apontava, muitos anos antes, as insuficiências da argumentação dominante na época, indicando claramente, na história agrária brasileira, os momentos de intensa presença política desses grupos sociais.
(4) Entre exemplos que se multiplicaram, nos anos recentes, cite-se, meramente à título de ilustração, a matéria do influente jornal The New York Times, que publicou, já em 1997 (20 de abril), em seu caderno dominical, uma longa matéria sobre o MST, intitulada "Os despossuídos", fartamente ilustrada com fotos do conhecido fotógrafo Sebastião Salgado.
(5) São inúmeros os trabalhos atualmente existentes sobre o MST, abordados sob os diferentes ângulos referidos, excetuando-se o último grupo dos "estudos nacionais", que oferece raros exemplos. Provavelmente, a mais ousada incursão sobre a história deste movimento social (inclusive porque contou com o apoio da própria organização, que facultou o acesso a arquivos e documentos próprios), tenha sido a tese de doutoramento de Fernandes (1999). Os resultados deste estudo, contudo, embora reveladores e relevantes, do ponto de vista empírico, são extremamente modestos (e equivocados), em termos analíticos, provavelmente maculados pela íntima associação entre o pesquisador e o disciplinado militante do Movimento. Um caso similar, igualmente idealizante e pela mesma razão, ainda neste grupo, embora analisando apenas as ações "em educação" organizadas pelo MST é o trabalho de Caldart (2000), provavelmente a mais ideologizada análise sobre o Movimento já escrita - aliás uma tese de do!
 utorado, o que igualmente simboliza os desacertos entre a produção do conhecimento e seus constrangimentos ideológicos. Não são conhecidos outros estudos que tivessem a mesma abrangência temática, embora proliferassem, neste período, os estudos sobre aspectos parciais da ação do Movimento, em especial, os estudos de caso sobre assentamentos rurais. Estes últimos serão citados, neste artigo, apenas quando relevantes para o suporte específico dos argumentos apresentados. Para uma idéia geral, contudo, dos estudos sobre assentamentos já realizados, consulte-se as listagens bibliográficas dos artigos que fazem parte da coletânea organizada por Medeiros e Leite (1999).
(6) A compreensão do autor acerca do desenvolvimento agrário brasileiro no período contemporâneo encontra-se publicada em vários artigos. Consulte-se, por exemplo, Navarro (2000a).
(7) Como ilustração da notável mudança na base técnica da produção agropecuária, a partir dos anos setenta, recorde-se que o número de tratores existentes no campo brasileiro, em 1960, era de apenas 61,3 mil (todos importados) e, em 1980, já atingia 530,7 mil (todos produzidos internamente). O resultado dessa intensa mecanização foi que algumas regiões atingiram altos níveis de tratorização: São Paulo, por exemplo, já em 1985 apresentava 1 trator para cada 41 hectares de lavoura (similar à agricultura norte-americana). Além disto, o Brasil, que praticamente não consumia agroquímicos em sua agricultura, no final dos anos sessenta, já em 1980 passou a ser o terceiro consumidor mundial desses insumos. Como seria esperado, especialmente em função de ser este um processo de modernização destinado aos grandes estabelecimentos rurais, os impactos sociais foram igualmente significativos, especialmente em termos de redução das formas de ocupação em áreas rurais, o que igualmente está  na origem do MST no Sul do Brasil. 
(8) O meio rural brasileiro tem experimentado, nos anos noventa, um processo de empobrecimento visível e generalizado em todas as suas regiões. Entre a adoção do "Plano Real" (julho de 1994) e o final de 2000, por exemplo, enquanto a elevação inflacionária total atingiu 94%, em todo o período, os preços agrícolas subiram apenas 45%, o que está na raiz da queda da renda rural ao longo desses anos.
(9) Embora nenhum estudo tenha tido este objetivo, se as matérias dos principais jornais brasileiros, a partir de 1990, fossem medidas em centimetragem, conforme os tópicos cobertos pelas matérias, aqueles destacando o MST (ou a reforma agrária, por força da ação deste último) seriam, sem nenhuma dúvida, as primeiras em tamanho, se comparadas exclusivamente com outros assuntos de cunho social e/ou popular.
(10) O episódio causou intensa repercussão, pois os agricultores envolveram-se em um violento conflito com a força policial, em pleno centro da cidade de Porto Alegre. Em certo momento, um grupo de sem-terra cercou um soldado e um deles o degolou com sua foice, todos fugindo posteriormente, em meio à confusão reinante. Como resultado, a polícia militar do Estado acabou forjando falsos culpados, incriminando-os sem provas. O MST, por seu turno, transformou a prisão dos acusados em um falso problema, tratando seus militantes presos como "prisioneiros políticos", em uma inversão que produziu resultados públicos satisfatórios para a organização, desviando o debate para outro ângulo, que não o do assassinato do militar. 
(11) Neste ponto residiriam amplas possibilidades de uma interminável controvérsia, não apenas acerca do conceito de "movimento social" mas, igualmente, das diferenças entre um coletivo social que se organiza como movimento e um outro que estrutura-se como uma organização inspirada nos manuais leninistas. Não sendo o caso, neste artigo, de dissecar diferenças teóricas e conceituais, apenas enfatiza-se que o autor deste artigo, em relação ao primeiro aspecto, adere a uma noção de movimento social que não prescinde de um alto grau de participação de seus membros e uma estrutura decisória flexível e democrática. Se assim não for, a referência já será a uma organização, tal como o MST optou por aderir, a partir de 1986, e os riscos maiores, entre tantos outros, são exatamente aqueles de todas as organizações formais não democráticas - e, em especial, aquelas que se julgam portadoras do iluminismo político-ideológico. A referência obrigatória, neste caso, é certamente a obra cláss!
 ica de Roberto Michels, cuja "lei de ferro da oligarquização das organizações" é conhecida, uma tese que indica uma tendência poderosa no desenvolvimento organizacional. Este autor advertia, já em 1911: "a democracia é inconcebível sem organização  [que é] (..) a arma dos fracos em suas lutas contra os mais fortes (...) de meio, a organização passa a ser umm fim  (...) quem diz organização, diz oligarquia". (cf. Michels, Roberto. Political Parties, passim,  citado em Fox, Jonathan, 1990).  
(12) Alguns estudos sobre assentamentos já analisaram esta curiosa tentativa de "ideologização da produção". Consulte-se, por exemplo Cazella (1992); Navarro (1995), Souza (1999), Pereira (2000) e Brenneisen (2000).  
(13) As evidências da importância de situar-se em São Paulo materializam-se na abrangente presença, desde então, do Movimento nas páginas dos jornais e revistas, além de corriqueiras reportagens em outros meios de comunicação - matérias jornalísticas que alguns estudiosos julgam ser, inclusive, em alguma medida, "descriminalizadoras" (o que é outra diferença com o período anterior). Igualmente, há uma outra razão importante para o ressurgimento da força do MST nestes anos recentes, que se aponta aqui apenas como hipótese: provavelmente, em nossa história, nunca os proprietários territoriais estiveram tão enfraquecidos politicamente como o são atualmente, os sinais desta fragilidade sendo notórios - não apenas economicamente, mas especialmente do ponto de vista de suas organizações. 
(14) O outro grande evento recente, que produziu enorme repercussão e, claramente, "encurralou" o Governo Federal na ocasião, foi a marcha à Brasília, realizada em abril de 1997, que culminou com um comício político de grandes proporções, reunindo, provavelmente, em torno de cem mil pessoas, no evento conclusivo da marcha, naquela cidade. Um minucioso estudo sobre a marcha pode ser encontrado em Chaves (2000). Posteriormente, outros atos de pressão realizados nos anos seguintes, como a invasão de prédios públicos, em diversas capitais ou, ainda mais recentemente (janeiro de 2001), os ataques a estações agrícolas experimentais que pesquisam OGMs produziram igualmente generosos espaços nos meios de comunicação, mas é duvidoso que tenham também produzido a adesão da população, como nos casos citados e realizados anos antes. 
(15 Como ilustração acerca da formação dos jovens sem-terra, registre-se, por exemplo, que durante muitos anos, nas escolas do MST, os jovens recrutados que realizavam os cursos de formação política assistiam, entre outros, ao filme "The Killing Fields"  ["Gritos do silêncio"], dirigido por Roland Joffe (1984), não para discutir os horrores da guerra ou a agressão imperialista norte-americana ao antigo Cambodja mas, pelo contrário, para exaltar e inspirar-se na ação do "exército de crianças" formado pelos guerrilheiros do Khmer Vermelho. Claramente, neste caso e em vários outros mecanismos doutrinários utilizados, a ênfase não era (e não tem sido) na formação política universalista dos jovens sem-terra participantes mas, pelo contrário, reforçar a "mística" do MST, criando uma geração de militantes cegamente voluntaristas. Não surpreende, assim, que as camadas intermediárias do Movimento, em sua ação política, ajam de forma rigidamente dogmática, presas a um conjunto de prec!
 eitos políticos mínimo, do qual não podem abrir mão, pois se enfraqueceriam na interlocução e nas disputas políticas, pela falta de qualquer capacidade política mais abrangente. Também sem surpresa, resultante de uma formação política tão limitada, a diversidade desaparece nos esquemas de interpretação utilizados pelos quadros da organização, pois tal complexidade seria incompatível com a extrema simplicidade da formação política dos militantes sem-terra.  
(16) Esta "razão instrumental" torna-se ainda mais evidente quando se verifica que, de fato, a história do MST organiza-se fora do campo institucional (portanto, anti-sistêmica) tão somente em relação às ocupações de terra - ações que, em muitos Estados (como no Sul), são atualmente pouco impactantes, pois já vistas como meros instrumentos de pressão que garantam acesso a outras áreas de terra e, é claro, pela retórica ideológica de seus dirigentes principais. Quanto ao restante de sua "agenda" de demandas e ações, o Movimento, pelo contrário, talvez até seja o mais integrado (ao sistema dominante) de todos os movimentos sociais e suas organizações - as evidências deste argumento são tantas que, por serem provavelmente notórias, não parece ser necessário relatá-las, bastando talvez ressaltar que nos anos mais recentes a sustentação do MST se dá, majoritamente, pelo acesso às políticas públicas, que garantem a sustentação financeira da organização. Nada mais contraditório, por!
 tanto, do que sua deslegitimação discursiva do Estado (Martins, 2000a).
(17) Para não citar a campanha nacional pela delimitação do tamanho das propriedades rurais (em um regime capitalista?) ou, ainda mais incompreensível, a posição da organização em relação ao programa governamental intitulado "Banco da Terra", que pretende oferecer crédito para a aquisição de terra às famílias sem-terra, com recursos do Banco Mundial. Contrariamente ao esperado, em face de sua força política no período (o projeto foi implantado em 1997), o MST recusou-se sequer a negociar com o Governo Federal os limites deste programa (o qual, dependendo das condições de pagamento, é atraente para as famílias rurais mais jovens, na forma de crédito fundiário). Preferiu, pelo contrário, o mecanismo inócuo da "denúncia" do programa e a reivindicação, junto ao Banco Mundial, do "Inspection Panel" que, sem surpresa, nada produziu de efeitos práticos. 
(18) Contrariamente ao senso comum predominante, entre 1995 e 2001, por exemplo, a administração federal  realizou um programa de reforma agrária que desapropriou terras e assentou famílias rurais sob números que suplantam praticamente todo o histórico anterior, somadas todas as iniciativas antes realizadas por outros governos. Se os números gerais são extremamente significativos, contudo, nesta comparação, alerte-se que nem assim alterou de forma perceptível o índice de Gini referente à distribuição de terras no país, que permanece com um dos mais altos, entre todos os países.
(19) Tal inversão pode ser simbolizada pela manifestação do jornal (de orientação conservadora) Zero Hora, o principal do Rio Grande do Sul, que estampava, em 14 de agosto de 2000, a seguinte manchete principal: "Fazendeiros definem plano de resistência a ameaças de sem-terra".  Dez anos antes, uma manchete semelhante certamente trocaria a posição, na frase, das palavras "fazendeiros" e "sem-terra". Uma sintomática indicação, exatamente, do clima de relativo desalento que instalou-se entre os grandes proprietários de terra, em algumas regiões, incapazes, cada vez mais, de usar os aparatos estatais para manter a intocabilidade de seu patrimônio fundiário.
(20) E, se doutrinárias e também fortemente ideologizadas, o lustro "analítico" é, quando menos, infeliz. Causa espanto, por exemplo, a utilização nas escolas de formação do MST, ainda hoje, como um manual básico de "compreensão do mundo", do livro de Marta Harnecker, Os elementos fundamentais do materialismo histórico, um best seller  da esquerda latino-americana que repete o modelo estruturalista althusseriano em voga na remota década de 1970 mas, logo depois, remetido à arqueologia sociológica. Não surpreende, assim, encontrar jovens sem-terra tornados dirigentes, posteriormente, imersos em visão de mundo tão fechada, incapazes de perceber (e analisar) a complexidade da sociedade, aceitar a diversidade social e, especialmente, assumir posturas democráticas, temas ignorados em tais escolas de formação. Presos à insegurança de sua formação política, o comportamento autoritário acaba sendo a única maneira de proteção à sua ação, pois a exposição à alteridade poderia corroer a!
  posição destacada assumida pelos dirigentes do Movimento em seus respectivos municípios e estados (de fato, o caso do MST, com seus inúmeros ícones, é típico da rendição da razão política aos imperativos da estética e da simbologia ritualística da política moderna).  
(21) Observações encantadas perdem completamente o senso de realidade. Sobre Chiapas, por exemplo, Michael Löwy observou que "(...) it is a movement freighted with magic, with myths, utopias, poetry, romanticism, enthusiasms and wild hopes, with 'mysticism' (...) and with faith" ("Sources and resources of Zapatism", Monthly Review, 49(10), March 1998, p.1-2) e, em relação ao MST, foi ainda mais categórico, acentuando que "(...) também se caracteriza por um misto espantoso de religiosidade popular, revolta camponesa 'arcaica' e organização moderna, na luta radical pela reforma agrária e, a longo prazo, por uma 'sociedade sem classes'. Esse movimento (...) tornou-se hoje o mais importante movimento social do Brasil, a principal força de contestação da política de modernização neoliberal empreendida por sucessivos governos brasileiros" ("A mística da revolução", Folha de São Paulo, 1 de abril de 2001, Caderno "Mais!", p. 6). Tivesse pelo menos uma vez adentrado os rincões rurais!
 brasileiros (ou mexicanos), ou conhecendo textos referenciais da literatura internacional (Moore, 1967, por exemplo), Löwy certamente concordaria com Martins, quando este acentua que "(...) falta demonstrar, com evidências, que o nosso campesinato tem uma virtualidade histórica similar à que foi consagrada ao proletariado na teoria [marxista] das transformações sociais (...)", ressaltando que a sobrevivência camponesa dependerá que "(...) se realizem naquilo que os preserva e transforma ao mesmo tempo: empreendedores comunitários e condominiais orientados pelos valores tradicionais e conservadores da terra, do trabalho, da família, da comunidade e da religião" (Martins, 2001: 48-49).  
(22) Esta observação não deve ser confundida, é claro, com a dramática penalização pessoal cobrada aos trabalhadores rurais e pequenos produtores, na história agrária brasileira, sob as diversas formas da violência instituída pelos grandes proprietários de terra, resultando em centenas de vítimas, ao longo dos tempos. Acentua-se aqui, como é óbvio, o "jogo democrático", que não admitiria a intolerância que deslegitima os diversos interlocutores e, muito menos, os elimina. Consulte-se, para tanto, os boletins anuais da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no campo do Brasil, publicados regularmente desde os anos oitenta, onde as sombrias estatísticas da violência rural são organizadas. Consulte-se, igualmente, Barp (1997).
(23) Caberia insistir, nesta parte, que tais posições representam, em todos os casos, situações de mobilidade social que, relativamente, são irresistíveis para a ampla maioria dos jovens rurais recrutados pelo MST. Situados social e economicamente entre os mais pobres da estrutura social brasileira, não é preciso análise mais aprofundada para imaginar o imenso impacto que representa para as expectativas de vida de tais jovens a possibilidade de sair de sua comunidade para ocupar "posições de poder", realizar cursos, viajar, enfim  beneficiar-se da presença pública do MST, inicialmente na própria região, mas com a possibilidade de estender-se até nacionalmente (e os exemplos demonstrativos de outros sem-terra conhecidos apenas reforçam esta possibilidade). O resultado inevitável tem sido a formação de uma expressiva camada de militantes intermediários que mantém uma férrea disciplina e obediência aos dirigentes principais, ameaçados de serem deslocados neste processo social as!
 cendente, se hesitarem em algum momento (ou ainda, o que tem sido inaceitável na história do Movimento, se ousarem contestar decisões da "alta direção"). 
(24) Formalmente, o MST não existe, pois sua sigla e imagem pública refletem apenas o ator político. A face formal do Movimento se dá através de uma organização chamada ANCA (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e suas afiliadas, as AECAs (que são as associações estaduais), todas registradas legalmente. Além disto, as inúmeras cooperativas do Movimento, igualmente formalizadas, e algumas formas organizacionais menores também existentes, todas elas capazes de reivindicar acesso a fundos diversos, regularmente, segundo os imperativos legais existentes e, posteriormente, sustentar financeiramente o Movimento em suas lutas políticas. Ao contrário de suposta e divulgada descentralização, todas essas organizações são inteiramente hierarquizadas, obedecendo à direção nacional do MST. 
(25) Conforme manifestação de João Pedro Stédile (maio de 1994), em exposição pública realizada no âmbito do "II Encontro Estadual da Equipe de Reforma Agrária da Emater/RS", evento realizado na cidade gaúcha de Veranópolis, promovido pela empresa pública de extensão rural do Rio Grande do Sul, a Emater/RS (transcrição ad litteram retirada da gravação da palestra). Este dirigente, que é o principal líder do MST, desde a sua fundação, é um filho de pequenos agricultores do Rio Grande do Sul introduzido na luta política recrutado pela Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, nos anos setenta. Economista, com curso de pós-graduação realizado no México, situa-se ideologicamente no campo do marxismo ortodoxo e, embora um hábil estrategista e profundo conhecedor do mundo rural brasileiro, caracteriza-se igualmente por oferecer constantes bravatas em suas manifestações públicas, o repertório de suas falas mais pitorescas quase compondo atualmente um anedotário político. Sua li!
 derança, contudo, é indiscutível, merecendo até mesmo a produção, por seus acólitos, de literatura própria no estilo "culto à personalidade" (conforme o livro Brava gente, organizado por Stédile e Fernandes, 1999).
(26) Seria extremamente salutar para o debate democrático (e sob uma perspectiva à esquerda), por exemplo, discutir dois outros fatos inquietantes para a história do Movimento, em uma lista, à esta altura, já extensa, de casos similares. Primeiramente, quando o MST forjou votos para um candidato nas prévias que escolheram o candidato do Partido dos Trabalhadores, em 1998, no Rio Grande do Sul, o que alterou o resultado final e a escolha do candidato oficial, para tanto utilizando o surrado artifício, típico do passado clientelista das oligarquias agrárias, das "urnas móveis", que foram levadas para o interior dos assentamentos, à busca dos votos desejados pela direção do Movimento. O segundo aspecto é mais recente e nos remete à decisão da organização de introduzir o tema dos OGMs em sua agenda de ação, prometendo destruir "todas" as plantações experimentais e, inclusive, associando tais experiências genéticas à "globalização" e, assim, por extensão, aos símbolos desta última, como a rede de alimentos rápidos MacDonald's, que começam a tornar-se alvos de invasões de seus militantes. Seria curioso (e politicamente relevante) saber o que pensam os assalariados desta rede, que é a terceira maior empregadora privada no Brasil, se persistirem tais ataques e seus postos de trabalho forem ameaçados. 
(27) Ou, conforme a iluminadora observação de José de Souza Martins, "(...) parece-me complicado colocar o campesinato no centro de um projeto histórico para esta sociedade, como se fosse uma categoria cuja inserção social lhe assegurasse um papel dominante na história, porque supostamente fosse ele uma classe  portadora  da universalidade possível do homem (...) Como se o seu destino histórico fosse o destino de todos (...) As contradições do campesinato não se resolvem na solidão do seu penoso viver. Resolvem-se antes no fortalecimento das concepções conservadoras e na sua contraditória integração num modo de viver e produzir cuja lógica está exatamente na sua destruição como grupo humano particular. Sua visão de mundo se funda na sua própria experiência do mundo. Esse é o seu limite e o seu possível, marcado essencialmente não só pela luta pela terra, mas sobretudo pela luta sempre renovada contra o perecimento histórico." (2000: 49, ênfase do autor).


Bibliografia citada

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[1] Professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil (E-mail: znavarro@portoweb.com.br). O autor deseja expressar os mais sinceros agradecimentos a um pequeno grupo de leitores da primeira versão de artigo, cujos comentários permitiram corrigir equívocos e realçar os pontos analíticos de maior relevância, embora certamente sem nenhuma responsabilidade pelos erros remanescentes. Pela leitura crítica daquela versão (o que muito me honrou), sou profundamente grato a Boaventura de Sousa Santos, Gilson Bittencourt, Jonathan Fox, José de Souza Martins, Odaci Luiz Coradini, Raul Jungmann e Tarso Genro. 

 

[2] Conforme Camargo (2000: 43), por exemplo, “(...) o crescimento exponencial do eleitorado e a modernização da legislação eleitoral no Brasil do século XX é um fato histórico de extrema relevância, visto que ambos evoluíram de maneira contínua a despeito dos  stop and go da ordem política (...) o fenômeno democrático inclui hoje cidadãos que, pela primeira vez, de Norte a Sul, já estão integrados à era eletrônica (...) com votações registradas em tempo real, dificultando as recontagens de votos e as manipulações que facilitam a burla eleitoral. As legislações eleitoral e partidária são, além disso, as mais abertas e permissivas do mundo, possibilitando uma rotatividade das elites políticas sem paralelo em outras grandes democracias conhecidas (...)”. Mobilizando um eleitorado superior a 108 milhões de pessoas, em 2000, os processos eleitorais vêm surpreendendo a cada ciclo, a última novidade sendo a inédita eleição local de 75 candidatos indígenas em diversos municípios de sete estados brasileiros. 

 

[3] Por exemplo, entre aqueles que ressaltaram as impossibilidades políticas dos “povos sem história”, incluindo o campesinato, a referência clássica é Hobsbawm (1959), mas esta literatura recebeu raros autores, no campo intelectual da esquerda, que apresentassem uma leitura alternativa, o exemplo pioneiro, neste caso, sendo o estudo de Huizer (1976). Apenas nos anos noventa, quando desabou a literatura inspirada no marxismo vulgar, é que surgiram autores mais receptivos à idéia da participação política ativa das classes subalternas do campo. No Brasil, contudo, José de Souza Martins (1981), em clássico artigo, já apontava, muitos anos antes, as insuficiências da argumentação dominante na época, indicando claramente, na história agrária brasileira, os momentos de intensa presença política desses grupos sociais.

 

 [4] Entre exemplos que se multiplicaram, nos anos recentes, cite-se, meramente à título de ilustração, a matéria do influente jornal The New York Times, que publicou, já em 1997 (20 de abril), em seu caderno dominical, uma longa matéria sobre o MST, intitulada “Os despossuídos”, fartamente ilustrada com fotos do conhecido fotógrafo Sebastião Salgado. 

 

[5] São inúmeros os trabalhos atualmente existentes sobre o MST, abordados sob os diferentes ângulos referidos, excetuando-se o último grupo dos “estudos nacionais”, que oferece raros exemplos. Provavelmente, a mais ousada incursão sobre a história deste movimento social (inclusive porque contou com o apoio da própria organização, que facultou o acesso a arquivos e documentos próprios), tenha sido a tese de doutoramento de Fernandes (1999). Os resultados deste estudo, contudo, embora reveladores e relevantes, do ponto de vista empírico, são extremamente modestos (e equivocados), em termos analíticos, provavelmente maculados pela íntima associação entre o pesquisador e o disciplinado militante do Movimento. Um caso similar, igualmente idealizante e pela mesma razão, ainda neste grupo, embora analisando apenas as ações “em educação” organizadas pelo MST é o trabalho de Caldart (2000), provavelmente a mais ideologizada análise sobre o Movimento já escrita — aliás uma tese de doutorado, o que igualmente simboliza os desacertos entre a produção do conhecimento e seus constrangimentos ideológicos. Não são conhecidos outros estudos que tivessem a mesma abrangência temática, embora proliferassem, neste período, os estudos sobre aspectos parciais da ação do Movimento, em especial, os estudos de caso sobre assentamentos rurais. Estes últimos serão citados, neste artigo, apenas quando relevantes para o suporte específico dos argumentos apresentados. Para uma idéia geral, contudo, dos estudos sobre assentamentos já realizados, consulte-se as listagens bibliográficas dos artigos que fazem parte da coletânea organizada por Medeiros e Leite (1999).

 

[6] A compreensão do autor acerca do desenvolvimento agrário brasileiro no período contemporâneo encontra-se publicada em vários artigos. Consulte-se, por exemplo, Navarro (2000a)

 

[7] Como ilustração da notável mudança na base técnica da produção agropecuária, a partir dos anos setenta, recorde-se que o número de tratores existentes no campo brasileiro, em 1960, era de apenas 61,3 mil (todos importados) e, em 1980, já atingia 530,7 mil (todos produzidos internamente). O resultado dessa intensa mecanização foi que algumas regiões atingiram altos níveis de tratorização: São Paulo, por exemplo, já em 1985 apresentava 1 trator para cada 41 hectares de lavoura (similar à agricultura norte-americana). Além disto, o Brasil, que praticamente não consumia agroquímicos em sua agricultura, no final dos anos sessenta, já em 1980 passou a ser o terceiro consumidor mundial desses insumos. Como seria esperado, especialmente em função de ser este um processo de modernização destinado aos grandes estabelecimentos rurais, os impactos sociais foram igualmente significativos, especialmente em termos de redução das formas de ocupação em áreas rurais, o que igualmente está na origem do MST no Sul do Brasil. 

[8] O meio rural brasileiro tem experimentado, nos anos noventa, um processo de empobrecimento visível e generalizado em todas as suas regiões. Entre a adoção do “Plano Real” (julho de 1994) e o final de 2000, por exemplo, enquanto a elevação inflacionária total atingiu 94%, em todo o período, os preços agrícolas subiram apenas 45%, o que está na raiz da queda da renda rural ao longo desses anos.

[9] Embora nenhum estudo tenha tido este objetivo, se as matérias dos principais jornais brasileiros, a partir de 1990, fossem medidas em centimetragem, conforme os tópicos cobertos pelas matérias, aqueles destacando o MST (ou a reforma agrária, por força da ação deste último) seriam, sem nenhuma dúvida, as primeiras em tamanho, se comparadas exclusivamente com outros assuntos de cunho social e/ou popular.

[10] O episódio causou intensa repercussão, pois os agricultores envolveram-se em um violento conflito com a força policial, em pleno centro da cidade de Porto Alegre. Em certo momento, um grupo de sem-terra cercou um soldado e um deles o degolou com sua foice, todos fugindo posteriormente, em meio à confusão reinante. Como resultado, a polícia militar do Estado acabou forjando falsos culpados, incriminando-os sem provas. O MST, por seu turno, transformou a prisão dos acusados em um falso problema, tratando seus militantes presos como “prisioneiros políticos”, em uma inversão que produziu resultados públicos satisfatórios para a organização, desviando o debate para outro ângulo, que não o do assassinato do militar.     

 

[11] Neste ponto residiriam amplas possibilidades de uma interminável controvérsia, não apenas acerca do conceito de “movimento social” mas, igualmente, das diferenças entre um coletivo social que se organiza como movimento e um outro que estrutura-se como uma organização inspirada nos manuais leninistas. Não sendo o caso, neste artigo, de dissecar diferenças teóricas e conceituais, apenas enfatiza-se que o autor deste artigo, em relação ao primeiro aspecto, adere a uma noção de movimento social que não prescinde de um alto grau de participação de seus membros e uma estrutura decisória flexível e democrática. Se assim não for, a referência já será a uma organização, tal como o MST optou por aderir, a partir de 1986, e os riscos maiores, entre tantos outros, são exatamente aqueles de todas as organizações formais não democráticas — e, em especial, aquelas que se julgam portadoras do iluminismo político-ideológico. A referência obrigatória, neste caso, é certamente a obra clássica de Roberto Michels, cuja “lei de ferro da oligarquização das organizações” é conhecida, uma tese que indica uma tendência poderosa no desenvolvimento organizacional. Este autor advertia, já em 1911: “a democracia é inconcebível sem organização  [que é] (..) a arma dos fracos em suas lutas contra os mais fortes (...) de meio, a organização passa a ser umm fim  (...) quem diz organização, diz oligarquia”. (cf. Michels, Roberto. Political Parties, passim,  citado em Fox, Jonathan, 1990).   

 

[12] Alguns estudos sobre assentamentos já analisaram esta curiosa tentativa de “ideologização da produção”. Consulte-se, por exemplo Cazella (1992); Navarro (1995), Souza (1999), Pereira (2000) e Brenneisen (2000).  

 

[13] As evidências da importância de situar-se em São Paulo materializam-se na abrangente presença, desde então, do Movimento nas páginas dos jornais e revistas, além de corriqueiras reportagens em outros meios de comunicação — matérias jornalísticas que alguns estudiosos julgam ser, inclusive, em alguma medida, “descriminalizadoras” (o que é outra diferença com o período anterior). Igualmente, há uma outra razão importante para o ressurgimento da força do MST nestes anos recentes, que se aponta aqui apenas como hipótese: provavelmente, em nossa história, nunca os proprietários territoriais estiveram tão enfraquecidos politicamente como o são atualmente, os sinais desta fragilidade sendo notórios — não apenas economicamente, mas especialmente do ponto de vista de suas organizações.

 

[14] O outro grande evento recente, que produziu enorme repercussão e, claramente, “encurralou” o Governo Federal na ocasião, foi a marcha à Brasília, realizada em abril de 1997, que culminou com um comício político de grandes proporções, reunindo, provavelmente, em torno de cem mil pessoas, no evento conclusivo da marcha, naquela cidade. Um minucioso estudo sobre a marcha pode ser encontrado em Chaves (2000). Posteriormente, outros atos de pressão realizados nos anos seguintes, como a invasão de prédios públicos, em diversas capitais ou, ainda mais recentemente (janeiro de 2001), os ataques a estações agrícolas experimentais que pesquisam OGMs produziram igualmente generosos espaços nos meios de comunicação, mas é duvidoso que tenham também produzido a adesão da população, como nos casos citados e realizados anos antes. 

[15] Como ilustração acerca da formação dos jovens sem-terra, registre-se, por exemplo, que durante muitos anos, nas escolas do MST, os jovens recrutados que realizavam os cursos de formação política assistiam, entre outros, ao filme “The Killing Fields”  [“Gritos do silêncio”], dirigido por Roland Joffe (1984), não para discutir os horrores da guerra ou a agressão imperialista norte-americana ao antigo Cambodja mas, pelo contrário, para exaltar e inspirar-se na ação do “exército de crianças” formado pelos guerrilheiros do Khmer Vermelho. Claramente, neste caso e em vários outros mecanismos doutrinários utilizados, a ênfase não era (e não tem sido) na formação política universalista dos jovens sem-terra participantes mas, pelo contrário, reforçar a “mística” do MST, criando uma geração de militantes cegamente voluntaristas. Não surpreende, assim, que as camadas intermediárias do Movimento, em sua ação política, ajam de forma rigidamente dogmática, presas a um conjunto de preceitos políticos mínimo, do qual não podem abrir mão, pois se enfraqueceriam na interlocução e nas disputas políticas, pela falta de qualquer capacidade política mais abrangente. Também sem surpresa, resultante de uma formação política tão limitada, a diversidade desaparece nos esquemas de interpretação utilizados pelos quadros da organização, pois tal complexidade seria incompatível com a extrema simplicidade da formação política dos militantes sem-terra. 

 

[16] Esta “razão instrumental” torna-se ainda mais evidente quando se verifica que, de fato, a história do MST organiza-se fora do campo institucional (portanto, anti-sistêmica) tão somente em relação às ocupações de terra — ações que, em muitos Estados (como no Sul), são atualmente pouco impactantes, pois já vistas como meros instrumentos de pressão que garantam acesso a outras áreas de terra e, é claro, pela retórica ideológica de seus dirigentes principais. Quanto ao restante de sua “agenda” de demandas e ações, o Movimento, pelo contrário, talvez até seja o mais integrado (ao sistema dominante) de todos os movimentos sociais e suas organizações — as evidências deste argumento são tantas que, por serem provavelmente notórias, não parece ser necessário relatá-las, bastando talvez ressaltar que nos anos mais recentes a sustentação do MST se dá, majoritamente, pelo acesso às políticas públicas, que garantem a sustentação financeira da organização. Nada mais contraditório, portanto, do que sua deslegitimação discursiva do Estado (Martins, 2000a).

 

[17] Para não citar a campanha nacional pela delimitação do tamanho das propriedades rurais (em um regime capitalista?) ou, ainda mais incompreensível, a posição da organização em relação ao programa governamental intitulado “Banco da Terra”, que pretende oferecer crédito para a aquisição de terra às famílias sem-terra, com recursos do Banco Mundial. Contrariamente ao esperado, em face de sua força política no período (o projeto foi implantado em 1997), o MST recusou-se sequer a negociar com o Governo Federal os limites deste programa (o qual, dependendo das condições de pagamento, é atraente para as famílias rurais mais jovens, na forma de crédito fundiário). Preferiu, pelo contrário, o mecanismo inócuo da “denúncia” do programa e a reivindicação, junto ao Banco Mundial, do “Inspection Panel” que, sem surpresa, nada produziu de efeitos práticos. 

[18] Contrariamente ao senso comum predominante, entre 1995 e 2001, por exemplo, a administração federal  realizou um programa de reforma agrária que desapropriou terras e assentou famílias rurais sob números que suplantam praticamente todo o histórico anterior, somadas todas as iniciativas antes realizadas por outros governos. Se os números gerais são extremamente significativos, contudo, nesta comparação, alerte-se que nem assim alterou de forma perceptível o índice de Gini referente à distribuição de terras no país, que permanece com um dos mais altos, entre todos os países.

[19] Tal inversão pode ser simbolizada pela manifestação do jornal (de orientação conservadora) Zero Hora, o principal do Rio Grande do Sul, que estampava, em 14 de agosto de 2000, a seguinte manchete principal: “Fazendeiros definem plano de resistência a ameaças de sem-terra”.  Dez anos antes, uma manchete semelhante certamente trocaria a posição, na frase, das palavras “fazendeiros” e “sem-terra”. Uma sintomática indicação, exatamente, do clima de relativo desalento que instalou-se entre os grandes proprietários de terra, em algumas regiões, incapazes, cada vez mais, de usar os aparatos estatais para manter a intocabilidade de seu patrimônio fundiário.

 

[20] E, se doutrinárias e também fortemente ideologizadas, o lustro “analítico” é, quando menos, infeliz. Causa espanto, por exemplo, a utilização nas escolas de formação do MST, ainda hoje, como um manual básico de “compreensão do mundo”, do livro de Marta Harnecker, Os elementos fundamentais do materialismo histórico, um best seller  da esquerda latino-americana que repete o modelo estruturalista althusseriano em voga na remota década de 1970 mas, logo depois, remetido à arqueologia sociológica. Não surpreende, assim, encontrar jovens sem-terra tornados dirigentes, posteriormente, imersos em visão de mundo tão fechada, incapazes de perceber (e analisar) a complexidade da sociedade, aceitar a diversidade social e, especialmente, assumir posturas democráticas, temas ignorados em tais escolas de formação. Presos à insegurança de sua formação política, o comportamento autoritário acaba sendo a única maneira de proteção à sua ação, pois a exposição à alteridade poderia corroer a posição destacada assumida pelos dirigentes do Movimento em seus respectivos municípios e estados (de fato, o caso do MST, com seus inúmeros ícones, é típico da rendição da razão política aos imperativos da estética e da simbologia ritualística da política moderna).  

 

[21] Observações encantadas perdem completamente o senso de realidade. Sobre Chiapas, por exemplo, Michael Löwy observou que “(...) it is a movement freighted with magic, with myths, utopias, poetry, romanticism, enthusiasms and wild hopes, with 'mysticism' (...) and with faith” (“Sources and resources of Zapatism”, Monthly Review, 49(10), March 1998, p.1-2) e, em relação ao MST, foi ainda mais categórico, acentuando que “(...) também se caracteriza por um misto espantoso de religiosidade popular, revolta camponesa 'arcaica' e organização moderna, na luta radical pela reforma agrária e, a longo prazo, por uma 'sociedade sem classes'. Esse movimento (...) tornou-se hoje o mais importante movimento social do Brasil, a principal força de contestação da política de modernização neoliberal empreendida por sucessivos governos brasileiros” (“A mística da revolução”, Folha de São Paulo, 1 de abril de 2001, Caderno “Mais!”, p. 6). Tivesse pelo menos uma vez adentrado os rincões rurais brasileiros (ou mexicanos), ou conhecendo textos referenciais da literatura internacional (Moore, 1967, por exemplo), Löwy certamente concordaria com Martins, quando este acentua que “(...) falta demonstrar, com evidências, que o nosso campesinato tem uma virtualidade histórica similar à que foi consagrada ao proletariado na teoria [marxista] das transformações sociais (...)”, ressaltando que a sobrevivência camponesa dependerá que “(...) se realizem naquilo que os preserva e transforma ao mesmo tempo: empreendedores comunitários e condominiais orientados pelos valores tradicionais e conservadores da terra, do trabalho, da família, da comunidade e da religião” (Martins, 2001: 48-49).  

 

[22] Esta observação não deve ser confundida, é claro, com a dramática penalização pessoal cobrada aos trabalhadores rurais e pequenos produtores, na história agrária brasileira, sob as diversas formas da violência instituída pelos grandes proprietários de terra, resultando em centenas de vítimas, ao longo dos tempos. Acentua-se aqui, como é óbvio, o “jogo democrático”, que não admitiria a intolerância que deslegitima os diversos interlocutores e, muito menos, os elimina. Consulte-se, para tanto, os boletins anuais da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no campo do Brasil, publicados regularmente desde os anos oitenta, onde as sombrias estatísticas da violência rural são organizadas. Consulte-se, igualmente, Barp (1997).

 

[23] Caberia insistir, nesta parte, que tais posições representam, em todos os casos, situações de mobilidade social que, relativamente, são irresistíveis para a ampla maioria dos jovens rurais recrutados pelo MST. Situados social e economicamente entre os mais pobres da estrutura social brasileira, não é preciso análise mais aprofundada para imaginar o imenso impacto que representa para as expectativas de vida de tais jovens a possibilidade de sair de sua comunidade para ocupar “posições de poder”, realizar cursos, viajar, enfim  beneficiar-se da presença pública do MST, inicialmente na própria região, mas com a possibilidade de estender-se até nacionalmente (e os exemplos demonstrativos de outros sem-terra conhecidos apenas reforçam esta possibilidade). O resultado inevitável tem sido a formação de uma expressiva camada de militantes intermediários que mantém uma férrea disciplina e obediência aos dirigentes principais, ameaçados de serem deslocados neste processo social ascendente, se hesitarem em algum momento (ou ainda, o que tem sido inaceitável na história do Movimento, se ousarem contestar decisões da “alta direção”). 

[24] Formalmente, o MST não existe, pois sua sigla e imagem pública refletem apenas o ator político. A face formal do Movimento se dá através de uma organização chamada ANCA (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e suas afiliadas, as AECAs (que são as associações estaduais), todas registradas legalmente. Além disto, as inúmeras cooperativas do Movimento, igualmente formalizadas, e algumas formas organizacionais menores também existentes, todas elas capazes de reivindicar acesso a fundos diversos, regularmente, segundo os imperativos legais existentes e, posteriormente, sustentar financeiramente o Movimento em suas lutas políticas. Ao contrário de suposta e divulgada descentralização, todas essas organizações são inteiramente hierarquizadas, obedecendo à direção nacional do MST. 

[25] Conforme manifestação de João Pedro Stédile (maio de 1994), em exposição pública realizada no âmbito do “II Encontro Estadual da Equipe de Reforma Agrária da Emater/RS”, evento realizado na cidade gaúcha de Veranópolis, promovido pela empresa pública de extensão rural do Rio Grande do Sul, a Emater/RS (transcrição ad litteram retirada da gravação da palestra). Este dirigente, que é o principal líder do MST, desde a sua fundação, é um filho de pequenos agricultores do Rio Grande do Sul introduzido na luta política recrutado pela Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, nos anos setenta. Economista, com curso de pós-graduação realizado no México, situa-se ideologicamente no campo do marxismo ortodoxo e, embora um hábil estrategista e profundo conhecedor do mundo rural brasileiro, caracteriza-se igualmente por oferecer constantes bravatas em suas manifestações públicas, o repertório de suas falas mais pitorescas quase compondo atualmente um anedotário político. Sua liderança, contudo, é indiscutível, merecendo até mesmo a produção, por seus acólitos, de literatura própria no estilo “culto à personalidade” (conforme o livro Brava gente, organizado por Stédile e Fernandes, 1999).

 

[26] Seria extremamente salutar para o debate democrático (e sob uma perspectiva à esquerda), por exemplo, discutir dois outros fatos inquietantes para a história do Movimento, em uma lista, à esta altura, já extensa, de casos similares. Primeiramente, quando o MST forjou votos para um candidato nas prévias que escolheram o candidato do Partido dos Trabalhadores, em 1998, no Rio Grande do Sul, o que alterou o resultado final e a escolha do candidato oficial, para tanto utilizando o surrado artifício, típico do passado clientelista das oligarquias agrárias, das “urnas móveis”, que foram levadas para o interior dos assentamentos, à busca dos votos desejados pela direção do Movimento. O segundo aspecto é mais recente e nos remete à decisão da organização de introduzir o tema dos OGMs em sua agenda de ação, prometendo destruir “todas” as plantações experimentais e, inclusive, associando tais experiências genéticas à “globalização” e, assim, por extensão, aos símbolos desta última, como a rede de alimentos rápidos MacDonald’s, que começam a tornar-se alvos de invasões de seus militantes. Seria curioso (e politicamente relevante) saber o que pensam os assalariados desta rede, que é a terceira maior empregadora privada no Brasil, se persistirem tais ataques e seus postos de trabalho forem ameaçados. 

[27] Ou, conforme a iluminadora observação de José de Souza Martins, “(...) parece-me complicado colocar o campesinato no centro de um projeto histórico para esta sociedade, como se fosse uma categoria cuja inserção social lhe assegurasse um papel dominante na história, porque supostamente fosse ele uma classe  portadora  da universalidade possível do homem (...) Como se o seu destino histórico fosse o destino de todos (...) As contradições do campesinato não se resolvem na solidão do seu penoso viver. Resolvem-se antes no fortalecimento das concepções conservadoras e na sua contraditória integração num modo de viver e produzir cuja lógica está exatamente na sua destruição como grupo humano particular. Sua visão de mundo se funda na sua própria experiência do mundo. Esse é o seu limite e o seu possível, marcado essencialmente não só pela luta pela terra, mas sobretudo pela luta sempre renovada contra o perecimento histórico.” (2000: 49, ênfase do autor).